Alcino Silva
Vim aqui para este breve diálogo que me impõe a memória e a consciência. Haverás de me perdoar esta fala em murmúrio este sussurrar das palavras, mas é necessário, que o tempo volta a ser de medo, de receio, que as chamas das fogueiras pressentem-se no temor das noites em que o céu é iluminado por labaredas de intolerância e de ganância desmedida, também agora em nome de Deus , qualquer um, não importa qual, pois para os senhores da verdade, todos são bons, desde que triunfe a sua maldade suprema sentada numa qualquer cadeira de poder. Perguntam-me com quem dialogo neste cicio que mal se percebe e quase não se escuta. Com a história, naturalmente. Não, não com essa história, mas antes aquela que se escreve com uma letra das grandes no início da palavra. É verdade, essa que nos conta dos homens e das suas vidas pelo tempo. Por aqui me sento, a esta mesa no canto deste lugar onde se encontram as épocas, os espaços e os tempos que se foram somando. Temos um acordo. Eu relato-lhe o presente e a História me mostra o que guarda do passado nos seus arquivos. Bastas noites aqui vivemos nesta troca que nos enriquece a ambos. A história leva o presente que lhe trago e permite-me estas viagens ao passado. Por aqui, por estas terras, divaguei em tempos idos, em silêncio e em sossego, sem que se escutasse uma palavra desta boca que pasmava perante o que os olhos viam, contemplavam e admiravam. O aroma de pão quente na porta do forno e que se presumia delicioso rondava as casas das ruas estreitas de Narbonne entre a sombra do amanhecer dos pináculos da catedral e dos vastos muros da fortaleza. Sentei-me a observar e procurei afastar o sabor daquelas chamas que a todos queimava naquelas noites de dor e drama que assolava as terras da occitania na caça aos cátaros, à heresia que perturbava a marcha solene da igreja madre, senhora do verbo, rainha dos céus, dominadora da terra e dona da alma dos homens a quem condenava em vida. Olhei de longe as ainda belas, elegantes e esbeltas torres do castelo de Foix. Não cometi o atrevimento de me aproximar, pois a intolerância palmilhava ainda as ruas da pequena cidade pirenaica. Cheguei de madrugada neste regresso a um tempo que não é meu. Reconheço que vim meio escondido, em certa medida um pouco clandestino e assim percorri os acessos ao soberbo castelo de Carcassone. Que grandeza entre aquelas pedras. As luzes actuais iluminam e dão ênfase às muralhas, às ameias que albergaram aqueles que em pleno século XIII pretenderam regressar às origens, à pureza de uma religião que se perdia de si própria. A noite assustava-me e não conseguia deixar de olhar sobre o ombro e a cada rumor sentia o peso das cruzes nas capas dos cruzados que traziam os archotes das fogueiras que acendiam na negra escuridão as chamas da fé. Os primeiros alvores da manhã levaram-me pelos céus a aproximarem-me daquele conjunto montanhoso e a paisagem seduzia-me pela beleza arrebatadora do verde iluminado pelos raios solares. Os cedros, isolados, erguendo-se sobre os arbustos e o caminho quase escondido a rodear a montanha em direcção às ruínas da fortaleza de Lastours. Tantos séculos após, sinto ainda os vossos cânticos, escuto-os como se me encontrasse nesses alvoreceres em que a noite vos deixava, embalada pelos sons dos vossos louvores a Deus. Perdem-se como fios soltos entre o azul que nos serve de tecto. Cânticos? Sim, hinos que se espalham também pela manhã, outra manhã, quase ainda madrugada, mas sem verde, sem montanhas, apenas o amarelo acastanhado das areias do deserto que não permite que usufruamos do azul celeste. O pequeno grupo aguarda em silêncio e sem ruído, na expectativa tornada angústia de não saber o que vai acontecer. A viagem através do túnel durara três horas. Fora lenta, a caminhada. Curvados, sentíamos o peso da ansiedade perante o desconhecido. Partimos no interior da noite e à chegada surpreendeu-nos a madrugada. Um sinal, autoriza-nos a sair. Estamos para lá da fronteira com o mediterrâneo à esquerda. Em frente e à direita as ruínas de uma aldeia que a aviação do exército judeu arrasou na sua missão purificadora. De novo, a acção de lavagem das consciências, agora e hoje em nome de Deus , outro que não o anterior. Um veículo meio destroçado, recolhe-nos e alcança a estrada que para norte nos levará até Gaza. O exército dos judeus já não está, regressou ao outro lado da fronteira. As eleições no Estado judeu já acabaram e como a guerra, tornada chacina fazia parte da campanha eleitoral, também terminou. Hoje sente-se um silêncio de chumbo sobre os crimes. Os judeus calaram-se, escondem-se atrás desse mutismo, até à próxima guerra, ao próximo massacre. O mundo, cala-se também, impotente, passivo. O calor começa a fazer-se sentir e os nossos olhos dividem-se entre o que foi destruído e o que ainda resta. Aqui e além, uma ou outra oliveira parecem querer quebrar a solidão e mostrar sinais de vida. Ao longe, percebe-se a silhueta esbelta de um minarete e o canto que chama à oração sobrevoa-nos lento em voo rasante, agarrando-se ao nosso pensamento como a doçura daquela manhã. É outro Deus, este. Um só céu, um só universo e já vamos em três deuses, todos eles, verdadeiros, puros, vingadores. Alcanço Castelnaud a meio da manhã e a neblina que se ergue do rio ainda não se desfez realçando o ocre das cores que protegem as paredes das casas da aldeia. Em redor do povoado, como um abraço, a ternura do verde a lembrar-nos que é possível a beleza esmagar a violência, mas esta ressurge a cada noite com os seus fachos de luz e de morte. Assim, chegou aqui pelas mãos do arcebispo de Bordéus que ocupou e destruiu o castelo com as ideias que este albergava. A pedra amarela vence o tom de verdura da colina onde se instalava o castelo de Peyrepertuse, vigilante e dominador sobre o vale que se estendia no seu horizonte. Aqui chegou em 1217 Simón de Monfort com as suas fogueiras, os seus incêndios e as suas cruzes divinas, devastando essas comunidades cátaras que viviam na pobreza, na austeridade de normas de continência alimentaria e de abstinência sexual, vestindo-se com humildade. O trabalho manual que elegestes como base da vossa economia e as vossas regras de justiça e verdade, assustaram os mandadores sem lei, apesar de invocarem a de Deus. Inocêncio III, pouco quis saber se o vosso objectivo era voltar à autenticidade da mensagem evangélica, considerou-vos uma peste e criou esse Santíssimo Tribunal da Inquisição. As fogueiras acenderam-se no Languedoc e arderam em Lavour, Lastours , Peyriac, Carcassone, Preixan, Limoux, Mirepoix, Lavelanet, Montsegur, Perpignan. Ardiam os cátaros, ardiam homens e mulheres que na sinceridade da sua ignorância se atreveram a discordar e procurar outro caminho. De pouco vos valeu que no silêncio do medo que se seguiu, celebrassem os vossos ritos nas clareiras dos bosques ou nas eiras das casas de lavoura para evitar que vos demolissem os vossos lares até aos alicerces e os convertessem em depósitos de lixo, pois cem anos depois ainda Jacques Fournier, bispo de Pamiers e futuro papa de Avinhão, vasculhava a privacidade dos habitantes da aldeia de Montaillou e enviava os últimos cátaros para a fogueira sagrada. As ruas da cidade maior daquela faixa estreita entre o Neguev e o mar encontram-se ainda pejadas de destroços, de casas, de ruínas, de sonhos, de esperança, de mortos. Sim de mortos, pois os judeus deixaram 1.300 pelas ruas e entre as paredes dos edifícios que derrubaram à bomba. Esses judeus que continuam a celebrar o seu privado holocausto, tão democráticos no seu viver, tão religiosos, tão puros, com tanta sabedoria divina e milenária, utilizam o seu exército de assassinos para semear o terror indiscriminado vinte e quatro horas por dia sobre essa que é a maior prisão do mundo. Agora calam-se, refugiam-se. Não de vergonha ou de medo, porque se sentem impunes, mas preparando o próximo braseiro onde vão incinerando há sessenta anos os palestinianos. Em nome de Deus , também e naturalmente. Retorno às paisagens que se abrigam na sombra dos cumes pirenaicos. Não consigo afastar de mim, nem as luzes das chamas, nem o cheiro dos corpos acabados de assar na pira da intolerância que se estendeu pela Europa durante cinco séculos. Os senhores prosseguem como vândalos a encher as tulhas da vaidade com a cruz do fanatismo e a espada da injustiça e continuam as suas perseguições, a abarrotar as masmorras de corpos de homens livres. Cobardes, escondem-se atrás de Deus. A noite já vai longa. Eu e a História, abraçamo-nos e com passos rápidos e silenciosos desaparecemos no sossego dos tempos que hão-de chegar.
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