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01/01/08

FOI TUDO MENTIRA...!!!

Alcino Silva

Poster for the 'historical movie' "Dvorets i Krepost'"
("The Palace and the Fortress")


A memória gasta pelo tempo já não guarda todos os pormenores. Era o mês de Julho do ano de 1974, aí por essas 8 horas da tarde já crepuscular e na entrada de uma aldeia do vale de Fergana na longínqua Ásia Central oito homens de várias nacionalidades e idades, perfilavam-se ante o monumento aos homens soldados da aldeia, mortos em combate na guerra mortífera ali conhecida pela Grande Guerra Pátria. Em uníssono e em idiomas diversos entoaram a Internacional, homenageando aqueles dos mais de vinte milhões que haviam lutado e perecido por uma pátria, um ideal, um sonho, algo que sentiam e que chegaram a ver com os olhos que a terra levou. Tudo começou há milhares de anos, desde que o ser humano é subjugado por poderes que governam e se governam em opressões sem nome e sem lei com a excepção das que criaram para si próprios. Ficou simbolicamente assinalado pelos canhões do cruzador que navegava no delta do Neva e pelo assalto ao Palácio de Inverno que no dizer de Moshe Lewin não deixa ver, se aí nos fixarmos, o que foi o colapso de todas as instituições de poder. A partir desses instantes, o povo russo que há escassos 60 anos se libertara da servidão, iniciou um processo e uma experiência histórica inolvidáveis, tanto mais se pensarmos no estádio de desenvolvimento em que se encontravam os povos envolvidos. Em escassos 35 anos e apesar de uma guerra civil terrível e uma outra guerra insuportável, conseguiu tornar-se uma potência industrial, alcançar níveis de desenvolvimento agrícola extraordinários e passar de ser um povo que viajava na 5ª classe dos comboios – que se situava na parte superior e exterior das carruagens -, para viagens pioneiras no espaço. São autênticas epopeias os processos de industrialização, ímpares no mundo e na história pelo romantismo dos que participaram na construção de projectos que haveria de lançar o conjunto daqueles povos para índices de desenvolvimento desconhecidos, como tão bem os descreveu Ilya Erhenburg em o “2º Dia da Criação”. A diferença do que se vivia naquele espaço terreno do restante do planeta é que quem governava não eram os grupos possidentes de sempre, mas antes os de baixo, elevados às vestes do poder. É verdade, que como todas as experiências históricas, esta cometeu os seus erros, talvez demasiados se apreciados a partir de hoje, porventura, alguns toleráveis e compreensíveis se colocados no seu contexto histórico e outros dispensáveis e não aceitáveis tendo presente os princípios e os valores éticos daqueles que construíam o novo. Contudo, não parece acertado historicamente tapar o sol com a peneira. Nunca até à actualidade, nenhuma sociedade garantiu tantos direitos como aquelas que foram construídas naqueles países. Falharam é certo, por não compreenderem a totalidade da evolução histórica, por acelerarem o quadro mental que evoluía ou por pensarem que os processos revolucionários são lineares e irreversíveis, no domínio das liberdades individuais, dado que os interesses colectivos nunca deixaram de se encontrar garantidos. A Declaração, que as Nações Unidas haviam de aprovar em 1948 como os Direitos do Homem, contém direitos e liberdades. Como se disse, ao nível dos direitos já há mais de vinte anos eram prerrogativa dos povos que enveredaram por esse caminho. Ainda as feministas inglesas lutavam pelo direito do voto e já as mulheres russas viam esse direito garantido pela revolução. A razão que conduziu a que as liberdades não alcançassem do ponto de vista individual, outros horizontes, mereceria uma outra análise histórica, nomeadamente em comparação com essa mesma liberdade nos restantes países, sobretudo os que constituíam o espectro europeu. Pese embora todos os avanços alcançados, pese embora todos os êxitos sociais, pese embora todos os índices de qualidade de vida obtidos, hoje, dizem-me que …, foi tudo mentira….!!! Naturalmente que hoje pode ser até cómodo tapar o sol com o argumento de que Estaline foi um malandro. É evidente e inquestionável que existiram actos de exercício de poder que não devem ser tolerados, quanto mais não seja, pelo valor que representa a vida humana para aqueles que heroicamente têm sacrificado a vida por ideais de valor ético-moral acima de qualquer suspeita. Mas, sem desculpar o que não pode ser compreendido, não parece historicamente correcto analisar esta personagem desinserindo-a do contexto histórico da época. É importante realçar que ao tempo, as tão celebradas e ditas democracias que hoje não passam de exercícios de poder de partido único bicéfalo, se preparavam para a mortandade colonial que trinta anos depois ergueria uma montanha de milhões de mortos, somados a todos os outros milhões que a chegada colonial havia já morto, torturado e escravizado. É evidente que uma morte democrática não é a mesma que uma morte num contexto de ditadura. Que o diga o cidadão brasileiro assassinado com sete tiros na cabeça quando um democrático polícia britânico quis ter a certeza que não só estava morto, como completamente morto. Que o digam os torturadores da CIA que raptam cidadãos em qualquer parte do mundo, os encapuçam, transportam para centros de tortura e os fazem desaparecer. Haverá até um certo agradecimento por parte destes cidadãos quando sociedades livres e democráticas lhes dão o prazer destas violências. Que o diga o povo iraquiano quando um conjunto de democratas em nome de uma das maiores intrujices da história, mergulhou aquele país milenar numa girândola de cadáveres cujo fogo de artifício ainda não terminou. Este capitalismo que chegou aqui elevando para limites incomensuráveis as desigualdades sociais que continua a anafar uma minoria opulenta e parasitária, que não garante aos cidadãos do mundo, qualquer um dos direitos da Declaração dos Direitos do Homem e quanto às liberdades ilude o mundo com a ideia da liberdade de expressão desde que não passe as margens dos Cafés e não sirvam para outra coisa que não a expressão pessoal. Como escrevia há dias no Público São José de Almeida, não é de liberdade que falamos, é que tipo de liberdade é que estamos a falar. Em relação àqueles que me dizem que foi tudo mentira, sou dos que olham para a história como uma larga viagem, dos povos, dos Homens, da humanidade e não vejo os acontecimentos que surgem nesse percurso como uma fatalidade do qual não se sai. Nem os erros cometidos pelos descamisados na sua experiência histórica são uma fatalidade que os condenou para todo o sempre e muito menos o capitalismo será uma fatalidade histórica da qual não nos desenvencilharemos. Nesta viagem extraordinária socorro-me das palavras desse andarilho do planeta que dá pelo nome de Gonçalo Cadilhe quando citou «Ítaca» o poema em que Cavafy exorta Ulisses: «Mas não te apresses nunca na viagem. /É melhor que ela dure muitos anos/ Que sejas velho já ao ancorar na ilha/ rico do que foi teu pelo caminho/ e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. / Ítaca deu-te essa viagem esplêndida (…)» e Cadilhe acrescenta que «O sedentário está perdido porque tem um destino que não encontra. O nómada não procura, encontra-se no próprio acto de viajar». Sou dos nómadas que prefere a viagem das ideias, a descoberta do novo e que tudo isso se encontra, não num destino, não num porto, mas em permanente viagem, daí que não sinta receio pelo futuro e aos que me dizem que foi tudo mentira, apenas posso argumentar que a história nunca tinha tido registo de tão grandiosas verdades.


“Unicamente por causa da desordem crescente
Nas nossas cidades com as suas lutas de classes
Alguns de nós nestes anos decidimos
Não mais falar dos grandes portos, da neve nos telhados, das mulheres,
Do perfume das maçãs maduras na despensa, das impressões da carne,
De tudo o que faz o homem redondo e humano, mas
Falar só da desordem
E portanto ser parciais, secos, enfronhados nos negócios
Da política, e no árido e «indigno» vocabulário
Da economia dialéctica,
Para que esta terrível pesada promiscuidade
Das quedas da neve (elas não são só frias, nós bem o sabemos),
Da exploração, da tentação da carne e da justiça de classes,
Não nos leve à aceitação deste mundo tão diverso
Nem ao prazer das contradições de uma vida tão sangrenta.

Vocês entendem.”

Bertolt Brecht


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