Existe hoje, na esquerda, como que um diálogo de surdos entre os que não se conformam com as injustiças do capitalismo (ou das democracias capitalistas), mas se distanciaram das experiências falhadas do socialismo, e os que, não se conformando com o capitalismo, procedem ou falam como se o socialismo não tivesse existido.
Se os primeiros correm o risco de se acomodarem, os segundos correm o risco de se abrigarem numa espécie de religião profana.
Vem isto a propósito de um jornal* liderado, entre outros, por José Mário Branco, membro daquela plêiade de cantores de intervenção que, na esteira de José Afonso, tanto influenciaram e animaram a esquerda, os democratas, a música e a cultura portugueses, sobretudo nos anos sessenta e setenta.
Afirma-se o jornal “à esquerda da esquerda do sistema” e, de facto, tanto zurze no capitalismo e no seu actor político principal do momento, o PS, como, aqui ou acolá, no PCP e no BE. Mas, tal como estes, quanto ao “para onde e como”, quanto ao desenho de um modelo de sociedade alternativo, de que se dão ares de ter, e do modo de lá chegar, nada.
É certo que o PCP, que sempre apoiou o regime soviético (não indo além de uma crítica tímida a alguns erros cometidos), e o BE, crítico desse regime, continuam, em dias de festa, a apontar a meta do socialismo, tal como hoje faz Hugo Chávez que quer a Venezuela no rumo do “socialismo do século XXI”. Mas o que é que isto, de facto, quer dizer, ninguém sabe.
Ultrapassada que fosse a democracia capitalista, o que lhe sucederia? Aplicar-se-ia a velha receita (partido único; censura; controlo dos sindicatos; proibição ou forte limitação dos direitos de manifestação e de greve; polícia política; dependência dos poderes legislativo, executivo e judicial; concentração do capital no estado e abolição prática do mercado)? Ou o quê?
Sem dúvida que não pode deixar de constituir motivo para redobrados escândalo, crítica e resistência que até em países ricos e poderosos grasse essa injustiça fundamental que é a pobreza, e que, a cavalo da globalização, se propague por todo o mundo uma espécie de vírus anti-social. Esta é, de facto, uma situação que não se pode justificar com coisa nenhuma.
Mas não podemos ter hoje a mesma relação com os ideais do socialismo e do comunismo como se não tivessem havido as experiências que conhecemos. O meu ponto é que a esquerda só poderá reconstruir uma ideologia política credível e mobilizadora precisamente na base da crítica das experiências socialistas fracassadas, dela retirando todas as lições. É o que, de resto, se exige a quem instaurou um regime ou um sistema segundo uma teoria alegadamente científica, mas que não respeitou o método fundamental da ciência nem sequer as célebres máximas dos líderes revolucionários (“a prática sem a teoria é cega, a teoria sem a prática é estéril” ou “da teoria à prática, da prática à teoria” (sublinhados meus)).
O meu ponto é que a esquerda deve, desde logo, defender o aprofundamento e a prática de todos os direitos humanos contidos na Carta Universal, sejam os políticos, os económicos, ou os sociais. Mas isto não chega nem é o principal.
Fundamentalmente, é preciso que a esquerda defina e torne claro um projecto das transformações que, nos planos político e económico, considera necessárias para que daí resulte um progresso social. Concretamente, vai continuar a encarar a democracia política como formal e burguesa ou quer aderir aos seus valores (que nunca é demais lembrar: liberdades de expressão, de criação intelectual e artística, de informação, de associação, de manifestação e greve; separação dos poderes legislativo, executivo e judicial, entre estado e religião; subordinação das forças armadas ao poder político; eleição periódica de representantes por voto universal, directo e secreto; limitação dos mandatos; votação universal, directa e secreta sobre assuntos excepcionais) e lutar pela sua integral aplicação? Vai continuar a defender uma política de nacionalizações ou quer encontrar formas de regulação e controlo do capital sem pôr em causa a funcionalidade da livre concorrência em sistema de mercado? Vai continuar a sonhar com o assalto ao “Palácio de Inverno” ou quer seguir a via pacífica? Vai continuar a defender o “socialismo num só país” ou quer pensar em grande escala?
Se e enquanto a esquerda e a esquerda da esquerda portuguesas (para só me referir a estas), que justamente denunciam e movimentam contra a pobreza e a injustiça, não responderem, construtivamente, a estas questões, então bem pode dizer-se “que o rei vai nu”…
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