Veio para me propor a venda de um livro de cinema, um calhamaço em inglês recheado de fotografias a preto e branco de filmes desde os anos 60. Era aliás um especialista, conhecia os títulos, os argumentos, as datas, os realizadores, os actores e, como me disse mais tarde, era também um grande consumidor de filmes de terror, que ficava a ver pelas noites dentro depois de regressar a casa, do bar onde actuava como “drag queen”.
“Olhe, nem imagina o que me custa vendê-lo. Mas é muito volumoso e não tenho espaço lá em casa”. Soube logo que mentia quando me disse que vivia num quarto de pensão na Cordoaria e que tudo o que trazia vestido incluindo o relógio lhe tinha sido dado pelo namorado. “É ele que me veste porque os trapos estão muito caros. Mas agora decidi dar-lhe um presente. Quanto é que me dá pelo livro? Veja lá o que me vai oferecer porque ele vale mais de 12 contos pela moeda antiga”. Apercebendo-se da minha reserva, acrescentou sem esperar a minha resposta: “Pronto, fica por 5 contos, mas prometa-me que mo volta a vender pelo mesmo preço quando eu puder vir comprá-lo outra vez”.
Voltou várias vezes à livraria, ao fim da tarde, para “desabafar” e “descontrair” antes de se preparar para o espectáculo da noite. Chegava exuberante, falador, sem qualquer pudor nos gestos, na voz e no discurso “gay”. Adorava a mãe, de quem falava repetidamente descrevendo-a nos mínimos detalhes, e que dizia ser a única que o compreendia. Pediu-me para lhe guardar um livro do Ruy de Carvalho para lhe oferecer quando o pudesse comprar. A irmã condenava o seu modo de vida e passava a vida a insultá-lo e o irmão acusava-o de ter sido abusado por ele em pequeno. “Mas é mentira, não fui eu, foi o meu pai, que felizmente já morreu. Aliás esse meu irmão está há anos internado no Magalhães Lemos, doido varrido”.
Quando entrava um cliente na livraria, sentava-se como um menino bem comportado e não abria mais a boca até o cliente se ir embora. Tinha essa elegância. Depois recomeçava a agitar-se, com os mesmos modos extravagantes, como se estivesse num palco a tentar seduzir um público cansado. “Na rua chamam-me “bicha” mas eu não me importo. São uns ignorantes”. E punha-se a explicar-me a diferença entre “bichas” e “gays”: bicha é a ralé e gay é o artista. “Eu tanto sou uma coisa como outra, percebe?”
A última vez que o vi, reparei que os olhos estavam estáticos e vidrados, no meio do turbilhão do corpo e dos esgares do rosto. Por trás dos olhos vislumbrei uma espécie de abismo. Era uma tarde de verão escaldante e ele trazia um gorro de lã na cabeça. “Estou cheio de medo, tenho muito frio, a minha cabeça está a ferver. Preciso que me diga qualquer coisa antes do espectáculo”. “Mas o quê, Mário ?” – perguntei. “Sei lá, olhe, um poema por exemplo. De certeza que sabe algum. Preciso muito. Daqui a pouco vou começar a maquilhar-me e a vestir-me para o espectáculo, e preciso que me diga um poema. Estou com tanto medo” – insistia.
Só me lembrei do “Quási”, do Mário de Sá-Carneiro, que ele ouviu com os olhos muito abertos e religiosa atenção. “Mas esse é triste. Mas não faz mal. O que conta é a intenção. Obrigado na mesma. Dê-me um beijinho e deseje-me sorte. E não se esqueça de guardar o livro para a minha mãe”.
Não voltei a vê-lo. E já arrumei na estante o livro do Ruy de Carvalho.
1 comentário:
Belissimo!
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