Os Alemães nunca pensaram, ao fotografarem os prisioneiros dos campos com a competência técnica que os caracteriza, estar a convocar uma procissão de testemunhas alucinadas para uma espécie de juízo eterno dos seus crimes.
Ao percorrer os corredores de alguns blocos de Auschwitz com esses olhares que nos olham sem compreender o mal que lhes foi feito, esses rostos de todas as idades, alguns de extraordinária beleza, que as riscas do uniforme não conseguem reduzir a uma categoria, a um pormenor administrativo, temos o sentimento pungente de que a interrogação se dirige a nós e não aos seus carrascos.
Auschwitz é como o interior de uma pirâmide, construída alguns milénios antes de Cristo, decorada de hieróglifos incompreensíveis que fazem alusão a práticas de vida e de morte e a abomináveis sacrifícios, e para os quais nenhuma decifração parece possível.
Já todos vimos os filmes sobre os cadáveres da morte industrial e o estado a que ficaram reduzidos os sobreviventes.
Mas ficar numa sala detrás de uma vitrina que nos dá a ver uma montanha de sapatos, ou de colheres e pratos, de malas de viagem, de objectos pessoais que parecem ter sofrido com o destino dos donos, todos eles machucados e gastos, não "inteiros e bons" como a cigarreira do Pessoa, mas com as marcas do pesadelo, também eles, não se pode de olhar enxuto.
E, ao mesmo tempo, os turistas, numa corrente silenciosa, passam espreitando as enxergas, a sala dos interrogatórios, com o lugar do polícia sempre de costas para a janela e o holofote natural nos olhos dos presos, como se não houvesse mesmo a esperança de um abrigo, de uma sombra temporária, face ao olhar da morte. E vêem também a célula onde quatro homens tinham de passar um dia inteiro, sem se poderem sentar, uns encostados aos outros, como um animal de oito pernas dormindo em pé.
A tal ponto a ordem se torna nauseante que quando uma guia nos avisa, marcialmente, de que devemos tomar a esquerda ou a direita, para não "atrapalhar o trânsito", temos de reprimir um movimento de revolta.
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