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01/02/25

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



Lago Karakul, Pamir. Desconheço quando te chegará às mãos este postal. Por agora, estamos no final do Verão. O calor tende a esmorecer e os cumes brancos que resistiram, verão em breve o seu domínio de alvura aumentar e estender-se pelos vales planálticos. Quando esse tempo chegar quase nada se distingue para além da branquidão luminosa e sedosa e das pedras escurecidas da cordilheira que tombam quase na vertical e nem a neve consegue colar os seus tentáculos. Será a época desse vento que nos rasga a pele quando a expomos a esse ar onde rareia o oxigénio. Mas por agora, o sol domina a paisagem de terra seca amarelada onde não vemos ponta de erva ou flor. Quando nos encontramos do lado Norte deste lago formado pelo degelo, o nosso horizonte aparece coberto de um azul límpido e luzente de água imobilizada. No fundo desta plateia, os grandes picos da cordilheira cobertos de neve acima dos sete mil metros. Não existe um sonido que perturbe estes momentos, estas horas em que nos limitamos a observar e caminhar em pequenos passos. Quando nos sentamos, quedamo-nos nessa mudez que nos faz viajar na interiorização do belo e sentimos essa recusa de pensar no mundo. Percebemos que nos encontramos noutro patamar da vida, da existência, em que qualquer som soaria como um grito ou o arranhar de chapa em pedra dura. Seria uma dessas maldades que aqui não podem ter lugar. Neste lugar perde qualquer razoabilidade a velocidade das grandes urbes, as maldades e as ganâncias dos «mordomos do universo todo» e quando tentamos construir na alma do pensamento as terras do Tibre ao Nilo, o registo apaga-se pela incompatibilidade do inferno com a magia. Dobram-se os séculos e os milénios e a carcaça pôdre dos resíduos imundos em que se transformam os mandantes do planeta, não desaparece. Por vezes, como neste tempo em que vivemos, espalham-se como lama sobre os povos e as terras, semeiam violência na impunidade que lhes é garantida pelas guardas pretorianas do dinheiro e do cacete. Restam-nos estes lugares como refúgio protector das sanhas musgosas de serpentes sem moral e sem ética. As montanhas que olho na distância quase infinita do Karakul mais parecem um altar sagrado de pureza e letícia. Podemos imaginar tudo que os sonhos permitem com a quase certeza que se cumprirão. Estamos perante o soberbo e o irreal, e quando procuramos palavras que tornem esta realidade compreensível, constatamos que desapareceram ou ainda não foram criadas. A aldeia está a 20 kms, um misto de pequenas casas de quatro paredes e iurtas de abrigo numa espécie de parque de campismo se é que esta definição faz aqui algum sentido. Não faz, na verdade, mas ainda não conseguimos despir a memória dos termos que trouxemos. Não sei como vou regressar, mas pouco importa neste lugar. Se nos esquecermos do frio que desce na companhia da noite, podemos dizer que tudo é possível. Há momentos que vemos ao longe, na estrada de terra, passar motociclos, quase sempre europeus. De seguida podem decorrer horas ou dias até vermos alguém de novo. Há quem se aventure no rigor do Inverno, mesmo sabendo que a natureza nos pode engolir. Esta terra dura e amarela que os pés calcam, na Primavera enche-se de verde e por vezes a coragem de algumas plantas pode gerar flores. É o tempo dos pastos e dos rebanhos. Mas se de dia os olhos se repartem entre o azul da água, o castanho das montanhas, a neve dos cumes e o amarelo da terra, a noite traz-nos um galaxial universo que nos derrete em espanto. Ainda existem espaços terrenos onde podemos soltar os sonhos que nos fazem acreditar na humanidade e num mundo sem donos nem palhaços fardados de sátrapas. Caminho agora ao longo do lago. Não sei quando regresso. Cansada de ouvir tocar os tambores da guerra, vou continuar a fugir. Levo o postal comigo. Sigo para Norte para as montanhas do Altai.


 

 

A PERGUNTA

Mário Martins


      Uma ilha antiga do Porto
(https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&sca_esv=475fc5fd866ec640&q=ilhas+do+porto)


Porque é que “a condições objectivas de vida e habitação degradadas não corresponde uma acção colectiva de contestação e/ou revolta?”

Eis uma questão social e politicamente central e com plena actualidade, que é abordada segundo as diversas escolas de pensamento no livro “Moradores de bairros populares no Porto e em Braga – Condições objectivas de vida e estratégias de sobrevivência e resistência passiva”, enquanto parte de um projecto coordenado pelo Doutor em Ciências Sociais, Culturais e Políticas, Manuel Carlos da Silva.

No estudo dado à estampa, baseado em mais de 800 inquéritos e realização de entrevistas, são exaustivamente apresentados gráficos estatísticos que quantificam e qualificam a realidade social dos moradores de bairros populares.

Os resultados desta pesquisa mostram que “a quase totalidade dos moradores não conheceu de facto mobilidade social ascendente, e confirmam a tese da reprodução social e a manutenção de situações de pobreza relativa e, por vezes, absoluta.”

Relativamente à ausência de “um movimento social urbano reivindicativo e organizado face a condições de vida severas e de habitação degradada”, que o autor apelida de passividade, são expostas as quatro principais correntes ou modelos explicativos: “o modelo ontológico-moral de cariz funcionalista e culturalista; o sociopsicológico e a teoria da privação relativa; o modelo de poder; e a abordagem materialista histórica.”

No modelo ontológico-moral “os protagonistas sociais teriam tendencialmente uma personalidade-base, ora individualista e calculista, ora comunitarista e solidária, sendo factor determinante a consciência colectiva, a cultura num quadro de diferenciação social, mas complementar (…), (solidariedade mecânica na sociedade tradicional e orgânica na moderna) (…), gratificando os conformistas e cumpridores de normas da ordem estabelecida e penalizando os dissidentes, ‘desviantes’ ou ‘transgressores’.”

Já o modelo sociopsicológico, na sua versão mais recente, “reconhecendo uma maior variabilidade do comportamento humano (…) e partindo do raciocínio subjacente de que o lugar de cada actor social no sistema de estratificação estaria na base da medida de satisfação-insatisfação, apatia-rebeldia, frustração-agressividade”, considera que “quanto mais baixo for o estatuto de determinado indivíduo maior a probabilidade de motivação, (pre)disposição psíquica (…) para a indignação, revolta, protesto ou acção colectiva (…)”

Por sua vez, o modelo de poder “considera (este) como o factor explicativo dos comportamentos sociais, das relações clientelares, da acção sociopolítica das classes sociais, assim como das diferentes configurações políticas a nível local, regional ou nacional. À acção, ora contestatária, revoltosa ou revolucionária, ora resignada, passiva e conformista de determinados grupos/classes sociais, subjaz na arena política uma estratégia de poder consciente (…)”

Na abordagem materialista histórica, “as acções das classes e dos grupos sociais são explicadas a partir do(s) respectivo(s) modo(s) de produção, dos conceitos e categorias daí derivados, nomeadamente do grau de desenvolvimento das forças produtivas, relações de produção e conteúdos das instâncias político-ideológicas (…)”

No balanço crítico do autor “não há uma relação directa de causa-efeito entre pobreza ou privação relativa e revolta ou revolução, nem esta é resultante da soma de indivíduos insatisfeitos, descontentes e ressentidos. Como sustenta Scott, se o ressentimento fosse suficiente para a revolta todo o Terceiro Mundo estaria a arder em chamas (…) Os pobres, privados de recursos e posicionados em situação vulnerável em termos atomicistas e, sobretudo quando não organizados, não conscientemente politizados nem movidos pela utopia transformadora, preferem resguardar-se na esfera pública, quando muito, soltam os seus ‘desabafos’ ou ‘queixas’ num registo familiar ou informal e, amiúde, (semi)oculto, de modo a terem o beneplácito dos detentores de poder e, sobretudo, não sofrer retaliações pela emissão de críticas abertas, frontais ou públicas.”

Depois de criticar “o pressuposto estrutural e economicista na análise tradicional marxista em torno das classes sociais (…), tornando-se (assim) intrigante constatar como, perante a não-coincidência entre o factor de ordem económica e o comportamento político, se aliam na tradicional perspectiva marxista um economicismo apriorístico e a remissão para o campo ideológico como factor explicativo (…), o autor salienta que o modelo ontológico-moral culturalista e o modelo sociopsicológico foram rebatidos pela sua unilateralidade conceptual e/ou generalização não empiricamente comprovada, e que o modelo de poder e o modelo marxista, (embora) apresentando factores explicativos relevantes, foram objecto de crítica pela sua monocausalidade e, por isso, devem ser articulados com a perspectiva da “economia moral” (…) enquanto conjunto de motivações, experiências e sentimentos de (in)justiça partilhados e enraizados nas condições materiais de existência.”



POESIA

Helena Serôdio

 

 

 

CASA ONDE ME GUARDO

 

 

Minha gruta

De laço e penas!

Meu refúgio de hera, relva e sol,

Onde pantomino o caracol

Na concha do meu cuidado!

Só dentro de ti fico em paz, 

Só no teu seio me apraz

Bater asas p'ro dó do sonho.

 

Meu compasso binário

Que gira o canto cenário

Onde me encaixo tão bem!

Meu antro de viagem,

Minha gaiola de aventura,

Meu antro além!

 


 

ADORO!

 

 

Especialmente as pessoas que não desistem de mim, que ultrapassam barreiras somente para fortalecer o meu sorriso e ser tão precioso abrigo.

Amo quem cede, intercede e sabe colocar amor em todo o seu viver.

E divide!

Adoro gente que me multiplica e me faz olhar a vida com bons olhos...

Adoro quem me coloca na sua vida pela importância que isso tem para mim.

Adoro quem simplesmente pára para me abraçar porque estou no meu limite!

Adoro pessoas que conhecem o meu interior...!


 

REPENSAR INVESTIMENTOS?

Manuel Joaquim


https://images.app.goo.gl/QHX4suUZEmmQQxVd9


O Ministro das Infraestruturas e Habitação divulgou no dia 17 do corrente mês o Relatório Inicial da ANA – Aeroportos de Portugal, SA, (VINCI, empresa francesa) sobre a construção do aeroporto de Alcochete.

Depois de muitas peripécias passadas ao longo de anos para localizar definitivamente o local para a construção do aeroporto foi decidido que será em Alcochete. Peripécias resultantes de influências obscuras para a sua localização o que levou algumas personalidades e entidades a apostar nos diversos locais que os aliciaram a comprar grandes lotes de terrenos destinados à especulação imobiliária. Alguns ganharam outros perderam.

É interessante descobrir quem representa os interesses da ANA em Portugal e quem é o Ministro das Infraestruturas. Este foi Secretário de Estado das Infraestruturas do governo de Passos Coelho que tomou decisões polémicas sobre a TAP no fim do seu mandato.

Por isso, dizer que “mantém-se a intenção do Governo de não onerar directamente o Orçamento do Estado para a construção do Aeroporto” pode ser uma balela. Segundo o relatório, a construção deverá custar 8,5 mil milhões de euros, valor muito acima do valor previsto que era de 6.105 mil milhões, e prevê a sua abertura em 2037, contrariando os prazos do governo. Além disso a ANA pretende alargar o prazo de concessão até ao ano de 2092. Pelo que se percebe o actual aeroporto vai funcionar até ao ano de 2037.

Quem vai pagar a construção de uma nova ponte sobre o Tejo, de novas vias de circulação e de novos transportes, quem vai pagar os terrenos que vão ser comprados para substituir os terrenos militares de Alcochete?

Vai iniciar-se a construção da primeira fase do comboio de Alta Velocidade, Porto – Oiã, que no final vai ligar Porto a Lisboa. No Porto já estão a falar com moradores que vão ser expropriados e deslocados das suas habitações. Mas o comboio de Alta velocidade vai ligar Lisboa a Madrid e está previsto que da fronteira de Portugal a Madrid a viagem vai demorar cerca de uma hora.

O Aeroporto de Madrid é um dos maiores da Europa e continua a crescer até 2026.

Num tempo em que a energia está pelos preços da amargura em termos internacionais, em que se prevê uma diminuição da circulação aérea não só por esse efeito mas também pela diminuição do poder de compra de grande parte da população que alimenta o turismo na Europa, pela instabilidade política e social que atravessam muitos países, sabendo dos grandes interesses em jogo, atrevo-me a questionar se não será de racionalmente ponderar os investimentos previstos os quais poderão ficar pelo caminho por falta de capital?


TRUMPEZOICO

António Mesquita

(Donald Truck)



"Até recentemente, tínhamos razão  em acreditar na famosa máxima de Abraham Lincoln: 'Pode-se enganar todas as pessoas algumas vezes; pode-se até enganar algumas pessoas o tempo todo; mas não se pode enganar todas as pessoas todo o tempo.' Essa tem sido a crença fundamental da democracia americana."

(Daniel Boorstin in "The Image: A Guide to Pseudo-events" de 1961)


A era terminou com a extinção permo-triássica que eliminou cerca de 90% das espécies. Por outro lado, surgiram artrópodes, peixes, anfíbios e répteis e formou-se um continente único chamado Pangeia.

Recorro à imagem do Paleozoico, para me aproximar dum futuro talvez mais próximo do que pensamos.

A chamada crise climática, ao que se diz, provocada pelos países mais desenvolvidos (porque o metano das vacas dos pastores aborígenes terá uma responsabilidade insignificante), faz-nos pensar numa mudança de era, depois do que nada ficará como dantes.

Por coincidência, no pequeno teatro de marionettes que é a geopolítica, assistimos a uma transição que ecoa o surgimento de novas espécies e a extinção de outras ocorridas no Paleozoico, se tivermos o gosto da caricatura.

Os trabalhadores e as classes mais desfavorecidas da maior potência mundial, contra as doutrinas mais influentes no princípio do século XX, serviram-se da sua, mais ou menos vigente (refiro-me à adulteração das consciências provocada pelo meio mediático-tecnológico) prerrogativa eleitoral para pôr à frente dos destinos dessa potência, uma personagem que nos tempos de Lincoln, ou mesmo Kennedy, não passaria dum histrião de boulevard. Fizeram-no, não porque perderam o juízo ou porque foram manipulados, mas para tentar qualquer coisa de novo (revolucionário, seria de mau gosto), fora das consabidas políticas que confirmam a desigualdade mais gritante e a perpetuação duma vida sem futuro dos que estão no fim da escala. O partido democrata  deixou de merecer a confiança dessas camadas, sem embargo do sucesso de tal sistema no domínio económico e tecnológico para as elites. Estamos, se quisermos simplificar,  perante a repetição do impasse da democracia na Grécia Antiga: uma minoria de homens livres e culturalmente excepcionais e uma massa escrava, conformada, graças aos deuses do Olimpo, com esse estatuto.

É esse impasse, somado à demissão dos deuses, que explica o voto maioritário nos EUA. Não é um voto contra a razão, nem a favor dum criminoso e actor de vaudeville. É uma escolha desesperada para sair do impasse, nem que seja à custa do destrambelhamento do sistema. É quase o "quanto pior melhor".

Numa crónica recente, o impagável Miguel Esteves Cardoso diz que não é assim tão mau: o histrião só terá acesso a um mandato e o que fez e fará tem sempre um remédio: a desmontagem. De facto, assim como ele assina duzentos decretos dos seus num dia, um outro fará o contrário no mesmo tempo.

Entretanto, consolemo-nos com o espectáculo dum quase octogenário fazer o papel de César de revista popular. E com esse cúmulo de linguajar de palco que é o seu "drill, baby, drill", a propósito da anunciada escalada da perfuração de novos poços de petróleo contra o Acordo de Paris e tudo quanto seja o bom-senso político.

Quanto à política tal como hoje se vive cada vez mais, e à nova linguagem que lhe vem atrelada, a melhor citação é dum artigo no Público de 21 do mês passado, escrito por Pedro Adão e Silva:
"No dia da primeira eleição de Trump, Steve Kerr, nove vezes campeão da NBA, primeiro como jogador e agora como treinador, deixava um alerta numa conferência de imprensa em tom impaciente: a linguagem do comentário desportivo tinha contaminado o debate político. Estávamos no longínquo ano de 2016 e o treinador dos Warriors afirmava certeiro: “Talvez devêssemos ter previsto isto nos últimos dez anos. Olhamos para a sociedade, para o que é popular. As pessoas recebem milhões de dólares para irem à televisão gritar umas com as outras, quer seja no desporto ou no entretenimento. Acho que era apenas uma questão de tempo até que isso se estendesse à política.”

Esta era, apesar de tudo, é melhor que uma glaciação. Smile.

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