Kondopoga, Lago Onega. Carélia. Conheces a minha procura dos
grandes lagos, recônditos entre o dorso de montanhas verdes, mas este é longo e
largo, mas as margens são planícies de verdura, esta cor que cobre todo o
horizonte que nos acolhe. Cativa-me a placidez do que nos rodeia, o olhar
perde-se numa mistura de sonho e fantasia, enquanto as águas parecem
imobilizadas como retidas num cerco que não termina. As árvores, os arbustos e
as altas ervas floridas aparecem-nos como uma floresta impenetrável, mas que
nos protege. Ao final da tarde procuro o sossego que rodeia a Igreja da
Dormição. Deito-me no abrigo das ervas marginais e descanso a alma enquanto
dialogo com o horizonte. É a Carélia, a terra da língua veps ou vepsiana, uma
língua fínica que aqui convive com o russo. As águas entram pela terra dentro
como se fossem fiordes, mas sem montanhas. Esta pequena cidade com cerca de
trinta mil habitantes é atravessada por um canal de ligação entre dois lagos
cuja existência enquanto lugar urbano ocorreu no século XVI, mas evoluiu a
partir do século XVIII com a descoberta de pedreiras de mármore. Por aqui passa
o comboio que de Moscovo desliza para lá do círculo polar Árctico, até à cidade
de Murmansk. É o espaço dos duendes e dos mitos que vemos representados através
de estátuas esculpidas na madeira. Deixo-me adormecer em pensamentos
longínquos, em viagens que me levam pela história, da humanidade, dos seres
humanos e tudo o que a eles é inerente, mas esse trilho que me leva para trás,
aparece quase sempre ocupado pela violência, a avidez, pelo lado obscuro da
mente humana. Os sobressaltos que impulsionam essa vivência aparecem sempre
toldados de obscuridades sombrias de armários cheios de esqueletos, de muita
infâmia e de acções vandálicas. Podemos fugir, como faço agora, mas não nos
podemos esconder, menos ainda, esquecer. A mão sangrenta dos abutres
alcança-nos em qualquer lugar do planeta, tão azul olhado a partir do espaço e
tão negro quando o percorremos. Quantas estradas já andarilhei no silêncio de
florestas silenciosas e quando parece tudo envolto em segredo, as notícias do
mundo caem-nos como hienas famintas sobre o pensamento e a memória e
dilaceram-nos a alma. Como é possível a vida prosseguir quando diariamente um
povo aparece esmagado por um extermínio impiedoso, no fragor da fome e das
toneladas de bombas. Esgotaram-se as palavras, a paciência, a infâmia perdeu
sentido, tudo o que sabíamos que pudesse classificar a maldade, perdeu razão de
ser. Nem a escória nazi sentiu tanta impunidade. No final tentaram esconder os
crimes, chegaram a negá-los ou a atribuí-los a terceiros. Mas estes fanáticos
enlouquecidos, dementes e desmiolados, afirmam-no diária e publicamente em
directo. Já não é possível sequer admitir a convivência humana com esta espécie
rara de idolatras. Numa paragem do caminho, nesses instantes em que isolas o
pensamento, alguém fala em voz alta de direitos bíblicos. Penso na Bíblia como uma carta de valores
éticos e morais a cumprir pelas sociedades humanas acabadas de se sedentarizar
e erguer os primeiros núcleos urbanos e, como o ser humano tem sido tão igual
nos seus comportamentos em qualquer momento do seu estado de evolução, esses
valores podem facilmente ajustar-se a qualquer instante da vida humana. O que
já não é possível de aceitar é quando alguém acredita acordar há três mil anos
atrás e arrasar tudo à sua volta para dar enfâse a um estado milenar de loucura
no presente. A História diz-nos com elevados graus de certeza que tudo isto não
vai terminar bem e Deus por vezes também tem de ser impiedoso contra aqueles
que o pretendem substituir. Ao deixar Vladimir, durante longo tempo detive o
olhar sobre a Porta de Ouro, a sua grandeza, o baluarte das suas pedras, o
volume da sua monumentalidade, a resistência à passagem do tempo, o atravessar
dos séculos, assediada, quase vencida, mas sem nunca desistir de existir, de
resistir ao tempo e às intempéries da brutalidade humana. O mesmo viria a acontecer
quando atravessei Suzdal e extasiei os olhos na Catedral da Natividade, nas
suas formas e nas cúpulas cheias de azul celestial. De certa forma, ambos os
espaços arquitectónicos, Património da Humanidade, representam a beleza e a
resistência como se cobrissem a iniquidade com um manto de pureza. No entanto,
quando a Europa repete a história de há cem anos e as forças que encaminham o
continente para os braços da ignomínia militar e senhorial, tanto de Kiev a
Lisboa como de Roma a Estocolmo, quando, aqueles que lhe deviam barrar a
passagem, lhe estendem de novo, tapetes cor de rosa para desembarcarem,
sentimos que o futuro se encaminha mais uma vez para o abismo. No silêncio
adormecido das margens do Onega, estes pensamentos desembarcam sem aviso na
minha memória, quando procuro descansar nestes momentos finais do dia nos
arredores desta pequena cidade destruída em 1941 pelo exército finlandês que
invadiu estas terras para se juntar às hordas nazis e fechar o cerco de
Leninegrado, onde centenas de milhares de pessoas viriam a sucumbir ao longo de
três anos, à fome, ao frio e aos bombardeamentos. Quando percorremos a alameda
central do cemitério de Piskarievskoie ao som da música de Bach com a estátua
da mãe pátria ao fundo oferecendo um ramo de oliveira com um ar pungente no
rosto, sentimos um estremeção na consciência que abana a racionalidade humana
até aos alicerces do entendimento. Por aqui, o dia tomba, devagarinho, numa
espécie de despedida entre a melancolia e a tristeza e não sabemos se desejamos
regressar ou aguardarmos pela chegada da noite. Amanhã prossigo para Norte. O postal
segue de imediato.
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