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01/03/25

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



(Foto de I. Kalmykov)



Iáiliu, Lago Teletskoie, Altai. Quando deixamos a longa cordilheira do Pamir e seguimos para Norte em paralelo com a fronteira chinesa, a paisagem planáltica que nos acolhe permanece de terra e pedra seca que a altitude e a neve não deixam flor ou erva medrar. Mas o silêncio e o sossego compensam. Há ausência de sons que provocam a sensação da não existência de vida. Quando alcançamos o desfiladeiro por um deslizam as águas do Rio Katun, tudo em redor está em mudança. As montanhas comprimem-se e o verde domina agora o cenário. Surgem os sons do interior de florestas alpinas, das águas que ressaltam nas pedras em cada recanto, tudo nos aparece como um renascimento e percebemos que chegamos às Montanhas Altai ou Douradas como são localmente conhecidas e declaradas Património da Humanidade. Penetro neste mundo de verdes vivos e húmidos e quando subimos ainda podemos olhar à distância o pico do Vielurra, ou Belukha como por vezes vemos escrito, nos seus mais de quatro mil metros. Há uma espécie de oposição entre este verde terreno e o branco das alturas nevadas que ao derreterem-se dão origem aos lagos de cores irrepetíveis, que vamos encontrando. Como são os lagos que procuro, assim cheguei a este Teletskoie. É uma espécie de L invertido o que o alonga por cerca de 60 quilómetros. Chega a ter larguras de três quilómetros e meio, comprimidas entre montanhas em cujas encostas as árvores descem até às águas. Nesta espécie de pé com um pouco de perna, escapa-se pelos seus dedos o Rio Biiá que aqui nasce e juntamente com o Katun irão confluir para o Rio Obi que recebe como afluente, o Irtich. São os grandes rios siberianos, juntamente com o Ienissei, descem da cordilheira do Altai e navegam em grande caudal, para o Árctico. Tudo nos aparece numa escala de grandeza que aparenta esmagar-nos se não soubermos dosear a escala do que vemos. Procurei parar numa pequena aldeia na sola do pé gerada pela geografia do Teletskoie. Iáiliu, digamos que tem três ruas, chamemos-lhes assim e não ultrapassa os duzentos habitantes. Da aldeia posso olhar para os dois braços deste poderoso lago com uma reentrância pelo calcanhar para acolher o pequeno Rio Ilanda. Para quem chega do Pamir, fica rodeado por um mundo de água. Tal como no caminho que me trouxe, também aqui reparto o tempo entre o vazio do pensamento, como se fechasse uma câmara frigorífica, e a reflexão da vivência humana. E caminho, pela margem do lago até onde as sendas me permitem. Quando alcanço a foz do Ilanda, sento-me e deixo a memória adormecida, como se apagasse a luz dos sons e do movimento. Fica apenas o olhar e o tempo a passar. Mas há momentos em que a porta não fecha, por mais que tentemos, como se um obstáculo se interpusesse e impedisse o trinco de baixar. Nesses dias e momentos, o que recordo e todos nós vemos, impressiona pela miséria e pela grandeza. Por um lado, temos a beleza natural em todo o perímetro planetário, lugares que nos cativam e nos imobilizam pela impossibilidade de os descrevermos e vivenciarmos em toda a plenitude. O mesmo podemos dizer de algumas acções humanas. Nos lugares mais improváveis encontramos pessoas de grande nobreza que arriscam a sua vida para salvar um animal que se afoga. E quando esta pulcritude nos enriquece a alma e nos deixa serenados, surge-nos como um rio sangrento, algumas cabeças humanas como fossas sépticas que escoam para o exterior a lama da maldade sem tratamento. Os palhaços são hoje os actores principais, mas os donos do circo, escondem atrás do palco o perigo da sua maldade insaciável e permitem que o palhaço prometa a limpeza de um povo em directo, como qualquer banalidade normalizada. E assistimos a toda esta demência, paralisados e impotentes perante o crime hediondo que se desenrola perante nós. É difícil encontrar na história da humanidade, Estado mais infame do que o chamado Estado de Israel, um verdadeiro antro de loucura que inunda o planeta de escória apodrecida para satisfação das suas mitologias irracionais. Amarrados e estarrecidos assistimos a um dos momentos mais negros, senão mesmo o mais degradante, da história humana. Hoje está um dia bonito, a luminosidade dos raios solares desce por entre a folhagem, sente-se um rumor de vida como um sussurro longínquo, escutamos movimento e sons de acções que não vemos. Passaram já vários dias e não apetece sair da leveza deste lugar. Amanhã, prossigo para Norte, como se fugisse. Vou ao encontro do transiberiano. O postal segue comigo.


O ESPAÇO VITAL

Mário Martins

        

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“Toda a sociedade, em um determinado grau de desenvolvimento, deve conquistar territórios onde as pessoas são menos desenvolvidas.

Um Estado deve ser do tamanho da sua capacidade de organização.”

 Friedrich Ratzel (1844-1904)

(Etnólogo e geógrafo alemão; influente pioneiro da geopolítica.)



O que deve prevalecer: a geopolítica das grandes potências ou a soberania dos países?

Se é a geopolítica, os líderes russos têm razão na guerra da Ucrânia. Ainda nos inícios da invasão o Papa citou a opinião de uma pessoa que tinha na conta de muito ponderada, segundo a qual o Ocidente andava a ladrar no quintal dos russos. E já em pleno curso da guerra o antigo “caixeiro-viajante” do presidente americano Nixon, Henry Kissinger, entretanto falecido, alertou que o seu prolongamento redundaria numa indesejável e perigosa guerra Leste/Oeste, quente ou fria.

É da natureza das grandes potências imperiais a busca incessante do que consideram ser o seu “espaço ou interesse vital”, trágica e tresloucadamente perseguido pelo regime nazi. No quadro geopolítico só existe a soberania das grandes potências, submetendo-se os países da respectiva “esfera de influência” ao seu interesse territorial ou económico-financeiro.

É hoje, porém, claro que o imperialismo americano deixou de estar sozinho - para não falar da “esfera de influência” soviética do passado, e da soberania limitada dos países nela contidos - perante a crescente concorrência dos novos imperialismos, russo e chinês, que forçam uma nova ordem mundial visando uma mais favorável partilha do mundo.

Neste contexto, é ancilosada e improdutiva uma análise política baseada na crítica unilateral do imperialismo do “Grande Satã”.

Nenhum país gosta, no entanto, de ser invadido, física ou economicamente, a não ser por corrupção dos seus líderes. Veja-se o caso português, que não se submeteu a Castela nem ao imperialismo napoleónico (com a decisiva ajuda do exército inglês); e se hoje a sua soberania é mitigada, foi porque aceitou ser parte de uma união transnacional, à qual outros almejam pertencer.

A base da geopolítica é a “lei” da força, mas pode dizer-se que perante uma agressão que viola o direito, a soberania só se defende com a mesma “lei” (e o apoio de aliados fortes, entenda-se), ainda que à custa de grandes sacrifícios e sofrimento.  

Passe a ironia, “Dura lex, sede lex”…

PS:

1 - O novo presidente dos Estados Unidos, no seu melhor estilo de agente imobiliário, logo nos primeiros dias, à questão de saber a sua posição sobre o conflito israelo-palestiniano, respondeu cinicamente que é uma guerra deles, como se os americanos estivessem de mãos lavadas e não armassem Israel até aos dentes, não se coibindo mesmo de afirmar que Gaza se encontra praticamente demolida, mas que tem potencial, bom clima, boas águas... Daí à publicitação da ideia de a transformar na “Riviera do Médio-Oriente”, enxotando os actuais residentes palestinianos, foi um pequeno passo.

2 - No seu afã radical de pôr tudo em causa, quer em termos domésticos quer mundiais, a nova administração americana e os seus gurus ocultos, não recorrem exclusivamente à substância política servida por uma maciça campanha ideológica. Também revolucionam a forma: veja-se a substituição da gravitas pelos arremedos de dança do novo inquilino da Casa Branca, ou pelo aspecto casual, com o filho às cavalitas, junto do presidente, a falar para as câmaras não sei o quê, desse génio apalhaçado e podre de rico que dá pelo nome Elon Musk

Assim vai o mundo…humano.

O MOMENTOSO BOTTOM

António Mesquita
https://images.app.goo.gl/efxYgeZW3RS3413X8




"Valha-te o diabo, vilão! — interrompeu Dom Quixote. — Que coisas dizes tu às vezes! Até parece que as estudaste!
 — Pois juro que nem sei ler — respondeu Sancho." 
("Dom Quixote" de Cervantes) 



Nas "Mil e uma noites", o truque para motivar o califa a adiar a execução é sempre o mesmo. Sherazade deixa a peripécia a meio porque o tempo se esgotou.  Conseguida a trégua, enlaça-se com o amante uma noite mais. 

A narração começa com a metamorfose do filho do sheik num vitelo e duma escrava da família numa vaca, por artes duma prima do sheik, por sua vez transformada em gazela.  Estamos num conto com mais de mil anos e aceita-se a magia, sem pedir explicações.  

No "Sonho de uma Noite de Verão", Shakespeare recorre a uma arte que tal. Bottom, um actor de comédia, é igualmente convertido num burro por Puck,  um duende, e Titânia, a rainha das fadas interessa-se por ele.

Freud, numa carta de 1938 a Setfan Zweig, refere-se a essa personagem para lamentar que os Alemães tenham eleito um Bottom, que outra magia fazia parecer um homem vociferante.

Mais de oitenta anos depois, os tiques gestuais dessa criatura são timidamente (por ora) ensaiados por acólitos e ideólogos improvisados.

É caso para dizer que a democracia se tornou tão instável  como o clima e que a história se repete - esperemos que como farsa, segundo o "mot" de Marx. 

Pacheco Pereira, no Público de 22  passado, dizia que a democracia não são só eleições, mesmo livres na aparência. "Pode haver eleições livres e controladas, e existir legitimidade eleitoral, e não haver democracia, pela falta de outros elementos constitutivos do que é uma democracia, em particular dois: o primado da lei e o respeito pelos procedimentos que garantem os direitos, garantias e liberdades.". Mas quando os vigilantes da lei são eles próprios fanáticos...

Retomando o tema do intróito, podia dizer-se que o "povo", formado por milhões de vontades "sob influência", elegeu Bottom e que os  mágicos voltaram como no conto árabe ou na peça isabelina. Por isso tudo deve ser lido com uma chave que não é a da verdade dos factos, mas a das projecções mitológicas e o magnetismo estudado dum palco televisivo. 

Em "The Art of the Deal", o novo Bottom já disse ao que vinha. Tudo é dolarizável e, dos moradores do bairro aos arranha-céus da metrópole e do fulano e sicrano com que nos cruzamos todos os dias ao "dono de todas as estepes", há sempre um negócio a fechar para contento dos mesmos. É uma espécie que se rege 
pelos ‘espíritos animais’, de que falava Keynes, como alguém já citou.

Só saímos disto com o despertar e a deposição das máscaras. O homem da motoserra, em entrevista recente, diz que não quer despertar ovelhas. É de lobos que fala: "homo homini lupus" diziam os latinos com alguma razão. Os milénios que nos separam dessa sentença de Plutarco significariam então que não houve "progresso". Progresso é, aliás, um outro termo da magia moderna.

Estamos, talvez, prontos para a Inteligência Artificial. Essa criatura humana a quem demos tudo o que tínhamos para dar e guardar e que aprendeu, por si só, a melhorar e a fazer com mais eficácia aquilo que sabe fazer. A ponto de Bill Gates admitir, numa série da Netflix, que ele, o humanista e idealista, com várias actividades que, sem dúvida,  considera filantrópicas, se verá, qualquer dia, interrogado pela criatura com a estocada definitiva: - "Por que te metes nisso? Eu posso fazer melhor. Vai, em vez disso, jogar golfe, por exemplo."

O pior é se Bottom recebe também  o mesmo convite...

UMA PRIMAVERA

Manuel Joaquim

"Uma Primavera" de  Gino Severini 
(https://images.app.goo.gl/LVFgCjwqaZTuXLUM9)

 


A Primavera começa a despontar aqui e ali mesmo contra as vontades de aves agoirentas que, em desespero, procuram bloquear os raios de sol para manter a escuridão para melhor saborearem as carnes putrefactas de que se alimentam.

As aves agoirentas que até agora só defendiam o inverno, com ameaças de graves turbulências e que nem sequer queriam ouvir falar na Primavera, já são obrigados a falar nela. O tempo está a mudar e, em desespero, com a ajuda de Prozac receitado por um General que conhece o inverno, essas aves, a seu tempo, mudarão de pouso.

Mónica Baldaque, numa entrevista que deu no passado dia 1 de Fevereiro, diz que “assistimos a um tempo de infantilização do homem. O estado de guerra é isso. Diz-se que se procura alcançar a paz. Mas a paz sem pensamento é um estado frágil e inevitavelmente conduz à guerra”.

Falar de Paz, defender a Paz era motivo para insultos e agressões. Hoje vemos agressores de palavras e de actos a falar de Paz. Palavra que lhes sai sem pensamento. Hoje vi na TV o personagem tira-fotos a falar de Paz, num recado que recebeu para dizer publicamente, mas o seu pensamento estava na guerra.

Os rapinadores e seus sequazes andam muito nervosos e aflitos porque o rapinador- mor quer ficar com quase tudo de valioso e não deixar nada para eles.  Todos eles tentaram rapinar do outro lado do muro mas parece que estão a ser vítimas da sua própria gulodice, habituados à rapinagem noutros mundos, tempos que já lá vão.

Mas a chegada da verdadeira Primavera, infelizmente, ainda vai demorar. Chegou agora à ribalta um alto representante de um dos grandes rapinadores e acérrimo defensor do inverno que pode desencadear grandes tormentas. Esperemos que não tenha grande futuro. Os raios do Sol da Primavera darão certamente energia suficiente para enfrentar todas adversidades.

 


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