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01/01/25

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




Palmira, no deserto da Síria. Regressei a Palmira, a cidade do deserto, por um tempo breve. Deambulo por entre as pedras milenares com o sabor amargo da derrota. A nossa, mas sobretudo, a derrota da humanidade. O conjunto das sociedades humanas devastadas e mergulhadas na impotência pela avalanche criminosa dos vândalos. Por aqui passaram há anos atrás e também por estas ruínas estugaram os passos, mas com a força maléfica de as destruir, de as deixar tombadas e inúteis para o desenho da história. Paramos no centro deste mundo milenar e fascinados pelos anéis dourados de um amarelo cobreado que o sol no seu declínio faz pousar sobre as paredes que vão resistindo à intempérie humana. Os olhos apertam-se perante a luminosidade que se estende pelo deserto e o pensamento percorre séculos e milénios vendo cavalgar por estas estepes de areia, assírios, caldeus, persas, Dario e os seus imortais, Alexandre, Roma e o seu império, bizantinos e otomanos e as colunas, templos, muros deste lugar onde reinou a rainha Zenóbia, a tudo resistiram mas só o século XXI tão civilizado, tão culto, tão pleno de sabedoria, pôde vencer e destruir o que se erguia soberana e dignamente no caminho entre Damasco e Deir ez-Dor, a cidade dos mosteiros, seguindo para diante numa das linhas da rota da seda. Olho o templo de Bel onde o sol se espelha com carícia nas pedras que ainda não se cansaram da sua altivez. Bel ou Baal, o deus semita, embora actualmente qualquer excremento humano se diga semita e se pense deus. A destruição deixou marcas profundas embora se procure restaurar o que ainda é possível. O arco de Septímio Severo na sua grandiosidade admirando a grande colunata. As pedras e restos de colunas espalham-se numa ordem caótica. Umas caíram pela impetuosidade do vento arrastando as areias do deserto, outras pela violência humana, tantas vezes ordenada e vingativa. A sociedade palmirena também tinha a sua trindade divina, Malakbel, Baal-Shamin e Aglibol. O primeiro era um deus solar e «mensageiro de Baal». O último «Cordeiro de Bel» era um deus lunar. O dia e a noite desta trindade. Baal-Shamin também era um deus solar, mas era a divindade suprema. Os três reinavam sobre a terra das areias em Palmira. Admiro longamente o que resta do templo de Baal-Shamin numa espécie de reflexão e questionamento que me leva a pensar na morte e na vida, na eternidade e no efémero, no absurdo do poder destruidor daqueles que não podendo iludir a morte, arrastam consigo a vida da humanidade, como um rio revolto que arrasta as margens na demência do seu caudal. Sentada nos degraus do Teatro Romano, sinto as notas de uma sinfonia planando sobre as areias no declínio solar deste dia. Recuo dez anos nas recordações de uma noite de Maio em que a orquestra sinfónica do Teatro Mariinski, espalha pelo espaço teatral romano as notas melodiosas de Bach, Prokofiev e Shchedrin em homenagem aos decapitados pela selvática onda de marginais armados pelos impérios coloniais, sem olvido do arqueólogo Khaled Al-Asaad decapitado em praça pública por não revelar onde guardar algumas das joias históricas de Palmira. Na noite do deserto sírio, a leveza de uma brisa não deixa que se apaguem nos rios do esquecimento as monstruosidades que se cometem em nome de Deus, de um ou de muitos Deuses por aqueles que se crêem e agem como se fossem deuses. Ao pensar que para Leste ficam as terras entre o Tigre e o Eufrates surge-me na memória o poemário de Lorca, “El río Guadalquivir / tiene las barbas granates. / Los dos ríos de Granada / uno llanto y otro sangre”. Pranto e sangue é tudo quanto se tem semeado nestas extensões desérticas refrescadas pela incansável água do Eufrates. “Oração para Palmira” assim foi a música solta pela arte e os instrumentos da orquestra Russa, mas nem a serenidade dos sons do violino ou os murmúrios da harpa, puderam impedir o regresso dos vândalos. Por enquanto ainda não cortam cabeças, vestiram-nos de Armani e visitam a Grande Mesquita dos Omíadas. Vão prendendo, torturando, assassinando e fuzilando e prometem a democracia para daqui a quatro anos. Não estão sós, um pouco a Sul, o chamado Estado de Israel transformou-se num canil de loucura e colocou a Humanidade de joelhos, impotente e derrotada. Com a noite chega a frescura dos hortos que rodeiam Palmira e ameniza o horror dos dias que vivemos. Não me voltem a perguntar por quem os sinos dobram, há muito que dobram pela Humanidade. Vou para Leste em direcção ao Pamir. O postal segue em breve quando as lágrimas deste deserto secarem.

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