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01/01/25

A LUZ DA ILUSÃO

António Mesquita



"Le total de la lumière est le monde". (Jacques Roubaud)

Depois de ver, ao fim da tarde, um filme premiado, passado numa das cidades mais populosas do mundo, o trânsito estava bloqueado e perdi a esperança de apanhar um autocarro na próxima meia hora. Vim a pé pela rua Formosa até encontrar um carro para Valongo, parado mais à frente. As pessoas exasperados na paragem do Campo 24 de Agosto tomaram de assalto o autocarro, entrando pela frente e por trás. As tensões naquele espaço apertado não seriam muito diferentes duma situação semelhante em Bombaim. Com a particularidade de co-existirem mais bem marcadas, as diferentes culturas, religiões e línguas.

Livrei-me desse aperto antes da Praça das Flores. E foi então que uma cena saída das páginas de Vitor Hugo me mostrou uma cidade desconhecida, que nada tinha a ver com as horas de ponta e as compras de Natal. Um velho, ainda ágil, em grandes passadas, envergando uma gabardine esvoaçante, com uma menina dos seus seis anos pela mão, arrastava uma coluna pela estrada, no espaço dos automóveis e dos autocarros, cheia de malas e de guarda-chuvas. Subi a rua do Amparo,  já noite fechada, fantasiando.

O filme que vi no Trindade e que ganhou o festival de Cannes deste ano, era, evidentemente, "Tudo o que imaginamos como luz", de Payal Kapadia, uma jovem  cineasta, nascida em Bombaim. Um título destes faz-nos tentar descobrir em tudo o lado contrário da escuridão. O primeiro 'travelling' ao longo das ruas, noite caída, sob a chuva, com diálogos dispersos  em 'off" sobre a vida de todos os dias e uma música de piano especial que tão bem se enquadra  no ambiente da monção. Foi escrita por uma monja etíope que morreu no ano passado, com 99 anos:  Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou. Perpassa uma ideia da grande cidade como ilusão salvífica. Só se suportam as tensões da vida e o conflito permanente com esse bálsamo que nos poupa a visão duma realidade tão  crua e, no fundo, tão falsa quanto a ilusão.

A história de duas enfermeiras ainda jovens num hospital de Bombaim.  Prabha (Kani Kusruti), enfermeira-chefe e Anu (Divya Prabha), recepcionista.  Vivem no mesmo apartamento e Anu atrasa-se na sua parte da renda. Tem também um namorado muçulmano que só a pode apresentar  à sua família se usar burca. Anu é mais viva, despreconceituada e gosta de dançar. Quanto a Prabha, conheceu o marido imposto pelos pais que logo a seguir foi trabalhar para a Alemanha. Desde então não tem notícias suas, mas um dia recebe pelo correio, em casa, um aparelho de cozer arroz feito naquele país. A sua frustração é grande, o que a leva a julgar com severidade a sua  companheira mais nova. Uma cena extraordinariamente erótica que revela aquele sentimento é a tentativa de imaginar o ausente com o aparelho entre as pernas. Outra personagem é a  cozinheira Parvati, amiga de ambas que está em vias de ser expulsa da sua casa por falta de documentos, pelo que pensa em regressar à sua aldeia. É aí que as três se encontram por um tempo, junto ao mar. O namorado de Anu vem ter com ela e a sugestão duma caverna esculpida de figuras mitológicas influencia o espírito de Anu que se entrega pela primeira vez a Shiaz, numa  cena explícita, mas com todo um pudor e uma sensibilidade a que não estamos habituados. Por sua vez, Prabha, em frente ao oceano, reconcilia-se com o seu destino, imaginando o marido afogado dando à praia e por ela ressuscitado com uma respiração boca a boca e que acaba por lhe pedir para voltar com ele para a Alemanha. Esta fantasia de Prabha, formalmente, pela sua extensão e modo de se inserir na história desequilibra um pouco o filme e é o único aspecto negativo que lhe encontro.

Quando tudo se consuma, o desejo e os sentimentos de Anu e Prabha, contra o futuro tenebroso, é então que o filme pode acabar com a reunião de todos, incluído Shiaz, finalmente  apresentado, no bar da praia iluminado, imagem  que se vai perdendo pouco a pouco na distância, símbolo da luz de que fala o título.

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