Mário Martins
https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&sca_
esv=abf976e12d8dcb8e&sca_upv=1&q=vida+e+destino
“Strum compreendia que sem o telefonema de Stálin ninguém no instituto teria louvado o notável trabalho dele (…) No entanto, o telefonema de Stálin não foi uma casualidade, não foi um capricho. Porque Stálin era o Estado, e o Estado não tem caprichos.”
Para quem tem dúvidas sobre o que é a literatura vulgar ou, como agora se diz, literatura light, este livro espantoso do soviético nascido em 1905 numa terra judaica na Ucrânia, Vassili Semyonovich Grossman (pseudónimo de Iosif Solomonovich Grossman), mostra o que é a literatura do mais alto nível.
Entregue ao editor em 1961, já no tempo de Khrushchev que sucedeu a Stálin, a sua publicação foi proibida, dizendo-se até (segundo a Wikipédia) que o ideólogo do partido/regime, Mikhail Suslov, terá informado o escritor que o livro não poderia ser publicado antes de passarem duzentos ou trezentos anos, o que, se revela a inexistência de liberdade de expressão e o carácter férreo e arbitrário da censura, dá verosimilhança aos factos romanceados, já que não os acusa de falsidade.
De acordo com o prefácio assinado por um dos tradutores directamente do russo, Filipe Guerra, o manuscrito só viria a aparecer na Suíça em 1980, pela mão de dissidentes soviéticos, tendo sido então publicado. Na Rússia foi preciso esperar pela glasnost para a publicação do romance em 1988. “A nada disto assistiu já Vassili Grossman, uma vez que faleceu de cancro de rim três anos depois de ter entregado o seu manuscrito e de o ver apreendido pelas autoridades.”
Pode dizer-se, de acordo com a Biografia Breve constante do livro, que há dois Vassili Grossman. O que, a partir de 1935 abandona a química e se torna escritor a tempo inteiro, admitido dois anos depois pela União dos Escritores Soviéticos; o que assiste à prisão de sua prima Nádia, que o ajudara muito nos seus primeiros passos; à prisão, em 1937 (o pior ano das grandes repressões), de dois dos seus melhores amigos, romancistas; à prisão e execução, em 1938, na sua terra natal, do seu tio, que tomara conta dele enquanto estudante do liceu.
Grossman não se manifesta publicamente sobre estes acontecimentos. Pelo contrário, em 1937 subscreve uma carta colectiva publicada na imprensa pedindo a pena de morte para os acusados do grande processo em curso contra dirigentes bolcheviques, entre os quais Bukhárin, enquanto intervém junto de Ejov, chefe da polícia política, para a libertação da sua mulher, ex-esposa de um “inimigo do povo”, o que não evita que o seu primeiro marido seja fuzilado na prisão. Sabe-se, porém, que este género de comportamentos de aceitação de delação, submissão e silêncio se haviam tornado na época um modo de sobrevivência (…)
O “segundo” Vassili Grossman é o que se lança, com outros intelectuais abalados na sua fé soviética pelo terror estalinista, na luta contra a invasão nazi em 1941 e, como ele pensava, por uma Rússia livre. Isento do serviço militar por causa de um início de tuberculose que o afectou, torna-se correspondente de guerra e esteve presente em todos os combates, dando provas de uma coragem exemplar: nos arredores de Moscovo, em Stalinegrado, na Ucrânia, na Polónia, até chegar, em 1945, a Berlim. Foi por esta altura, em 1944, que ele soube da morte de sua mãe, vítima das brigadas nazis de exterminação dos judeus, no momento da ocupação da sua terra natal, em 1941.
Durante a guerra, foi encarregue pelo governo soviético, juntamente com o escritor Iliá Ehremburg, de estabelecer o Livro Negro sobre as perseguições e a eliminação dos judeus soviéticos pelos nazis. Depois da guerra, porém, o Livro Negro é metido na gaveta, e a defesa dos judeus tornou-se perseguição e repressão destes. Também a pessoa de Grossman e a sua obra começaram a ser criticadas na imprensa, o que era muito mau sinal.
A ruptura definitiva de Grossman com o seu sistema de pensamento e com o sistema em geral, data, talvez, do “degelo” após a morte de Stálin, em 1953, em que teria adoptado como norma de vida, nessa época, a frase de Tchékhov segundo a qual “era tempo, para cada um de nós, de nos livrarmos do escravo que trazemos cá dentro”.
Se a luta contra o invasor nazi, com destaque para a longa batalha épica e sangrenta de Stalinegrado (hoje Volgogrado), no Sudoeste da Rússia, é uma narrativa convincente de quem a viveu por dentro, e o drama do envio dos judeus para a câmara de gás pelos nazis, um retrato pungente, a descrição da ausência de liberdade, do sistema de delação, disseminador de um clima de medo, da arbitrariedade das prisões e do envio para os campos de concentração, das execuções sumárias, constitui um autêntico libelo contra o regime soviético e o terror stalinista, em particular.
Mas onde a obra literária se eleva a grande altura é na exposição da trama complexa da psicologia dos indivíduos e das suas relações com os outros e com o Estado, dos seus diferentes caracteres e modos de pensar e agir, em que cada palavra, de tão exacta, parece não admitir modificação.
O leitor que se dispuser a escalar esta exigente obra de quase 800 páginas, chegado ao cume, decerto que experimentará a sensação de melhor conhecer a alma humana.
Sem comentários:
Enviar um comentário