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01/07/24

OS INARTICULADOS

António Mesquita

("The bikeriders", filme de 2023 de Jeff Nichols)





"De facto, por exemplo, eu creio que o 'heavy metal' ou o 'rock' são a desconstrução de todo o silêncio humano e de todas as esperanças humanas de quietude e de interioridade. Mas se alguém me diz que eles são a voz do futuro, e vive esta convicção sem pretender fazê-lo a partir duma bela casa toda branca com um grande relvado e com a estabilidade do emprego, não há a menor dificuldade." 
(George Steiner)


Um filme de motoqueiros dos anos 50, com Marlon Brando, "The WildOne", visto na televisão, inspira Johnny (Tom Hardy) a formar um clube chamado "The Vandals". Benny (Austin Butler),  um neófito taciturno, a lembrar James Dean, entra sozinho num bar com o emblema berrante do grupo e é intimado a sair por dois clientes e por eles depois espancado. A vingança do líder foi incendiar o estabelecimento. O sucesso do clube atrai jovens violentos de toda a parte. Johnny dá-se ao luxo de escolher. A entrada duma espécie de gigante é decidida por um duelo de faca entre o pretendente e o líder. Este, vencendo, aceita que o outro, apesar de derrotado, passe a fazer parte dos "The Vandals" com os seus amigos. Benny pergunta para que foi, afinal, o despique. Porque entram, nos meus termos, é a resposta. Mas o desafio da liderança é algo que parece acima das forças e do talento de Johnny. Obedecendo à atracção que o carácter fechado e misterioso do seu amigo mais novo exerce sobre ele, confessa-lhe as suas perplexidades e propõe-lhe a passagem do testemunho.  Mas Benny deixa-o sem resposta, com o seu silêncio selvagem.

As consequências da guerra do Vietname vêm trazer um novo alento destrutivo à organização. A violência e o crime passam a fazer parte do dia a dia, deixando para trás a delinquência juvenil dos primeiros tempos. O regresso dos soldados desiludidos e amargos quanto ao futuro do país, leva à perda da aura romântica dos Brandos e Deans.

O novo líder, um rapaz de 20 anos a quem Johnny recusou a entrada no clube, disputa que, mais uma vez, era para ser resolvida à faca, não teve qualquer pejo em aparecer com uma pistola e pôr fim à carreira do  chefe dos "The Vandals". Tinhamo-lo visto numa cena anterior a chicotear o velho progenitor que maltratava a mãe. É esta que lhe grita para se ir embora e não voltar mais.

A história de "The Bikeriders"  é sugerida  pelo livro de fotografias de  Danny Lyon's sobre um clube realmente existente com o nome de "Outlaws" de Chicago, lido pela primeira vez em 2003 por Jeff Nichols, o realizador. As várias cenas são ligadas pela narração da namorada de Benny, Kathy (Jodie Comer, excelente actriz, britânica como Tom Hardy). Longe de nos sentirmos exteriores ao espírito do gangue, por ser a narrativa feminina e anti-violência, a intensidade do jogo de Tom Hardy e Austin Butler e dos demais intérpretes faz-nos seguir com apaixonado interesse a vida e a morte do grupo.

Claro que o final do filme com a "entrada na ordem" do anjo rebelde Benny e a cabeça de Kathy encostada no seu ombro não é um "happy-end". A cena, mais uma vez, é sem palavras. E parece que é a fragilidade de Benny, regressado naquele momento a casa, depois da sua desaparição  inexplicada, que ali se expõe.

Mais do que a história duma época e duma subcultura - nestes tempos de internet e de redes sociais, seria improvável um fenómeno  como "The Vandals" -, as personagens de Johnny e Benny são um interessante paradigma da incapacidade de expressão. Os diálogos com o actor Tom Hardy são mais físicos do que verbais e o gosto pelas máquinas e pela velocidade, que une o punhado de anti-heróis do subúrbio do Mid-West americano talvez seja um exutório para essa falência da palavra.

Numa entrevista, Jeff Nichols realça o significado duma das últimas cenas  em que Johnny visita Kathy que vive sozinha desde que Benny "desapareceu na natureza". Johnny não consegue vencer a sua afasia e confessar que tem saudades do mais jovem e que precisa dele porque sente que vai morrer. Kathy dá-lhe a entender que compreendeu o que ele não foi capaz de dizer.

Ainda nessa entrevista, o realizador refere que o sotaque de Johnny não é de Chicago, mas que não se sabe donde vem. O jargão regional, diz, está em vias de desaparecer, porque, graças à tecnologia, todos vemos e ouvimos as mesmas coisas. A cor local é coisa do passado.

É ele ainda que tem esta opinião estranhíssima para um homem de cinema:
"There are some filmmakers that, honestly, I think are brilliant, but I don't watch their stuff because you can tell their worldview is pretty dark, and I don’t want to experience the world that way, because I don’t. " 

Tal atitude levar-nos-ia a só ver as obras cujo espírito compartilhamos... Mas compreendo-a como uma dieta temporária para não se ser influenciado no nosso próprio trabalho.

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