António Mesquita
"A Zona de Interesse" é um filme de Jonathan Glazer, de 2023, baseado, em termos muito gerais, no romance homónimo de Martin Amis. O livro começa por uma longa citação do "Macbeth", que é como que a epítome da ambição política e da maldade punida pela solidão do poder. Enquanto que o filme institui logo de início uma separação quase esquizofrénica entre a vida da família Höss, encostada ao campo de Auschwitz e a "cozinha" do Holocausto.
A piscina e a relva cercadas pelo arame farpado. O que podia ser uma cena naturista com corpos jovens banhando-se, é ensombrado pelos gritos das vítimas e os berros dos guardas. Esta dissociação não põe nenhum problema de continuidade e é apenas revelada pela posição da câmara e pela banda sonora. Quando Höss é chamado para trabalhar com Eichmann na "solução final" aplicada aos judeus da Hungria, ele despede-se por um tempo do papel de pai afectuoso e de marido fiel para se consagrar "in partibus" à extensão do morticínio.
Depois de obtida a nova missão, Höss que deu o nome à operação húngara, desce sozinho a escadaria e tem vários arrancos sem conseguir o vómito. A cena é entremeada com uma antecipação futurista. Assistimos à limpeza do actual Museu de Auschwitz, com as suas enormes vitrinas e os milhares de sapatos das vítimas.
E é assim que "A Zona de Interesse" termina, com um corpo revoltado contra a consciência funcionária e que não consegue aliviar-se. Mas será a alergia ou a indisgestão o único sinal de alerta?
A aparente contradição entre o mundo familiar e o do campo de concentração resolve-se pela ausência de imagens de violência. O filme foca o quotidiano dessa família (Höss e Hedwig - Christian Friedel e Sandra Hüler, os filhos e uma avó de visita que não aguenta aquela atmosfera) à custa duma visão normal, já não digo acima do labirinto em que as personagens encontram o seu próprio impasse, mas para lá do estereótipo duma vida saudável e desportiva.
Depois da interrupção da sua vida dupla, Höss dita uma carta oficial, terminando com "Heil Hitler, etc", o que no seu laconismo traduz perfeitamente o último estádio do entusiasmo ideológico, o da fórmula anódina duma carta comercial, sem que a máquina assassina do regime, funcione pior por isso. É nesse estádio, aliás, que o sistema deixa de causar eczemas de ética, como se viu noutras paragens.
O filme começa por um écrã escuro e um coro lúgubre da autoria de Mica Levi. Para entrarmos no ambiente risonho dos corpos banhando-se no rio "com uma espinha atravessada na garganta". A banda sonora é o referente da loucura face ao sol das imagens. A encenação da primeira meia hora persiste numa indistinção dramática do elenco, como se nos quisesse apresentar, em vez de pessoas, um colectivo ideológico de capa de revista.
Como "flashes" dum sonho, cenas dum conto infantil num negativo pintado entremeiam a evolução dos adultos. Hedwige não quer deixar o seu paraíso possível e acompanhar o marido à Hungria e Höss só pode concordar. O que introduzem estes negativos infantis é uma pergunta fecunda, de tal modo inviabiliza a ideia duma infância protegida do mal.
Ouvimos falar em alguns nomes sonantes do partido, mas o jogo que se nos quer mostrar é o do segundo nível da hierarquia, onde encontramos uma influência da ideologia de menor impacto. Essa circunstância, porém, em nada diminui a seriedade do cometimento pessoal. É essa característica o que talvez prenuncie a "lealdade" nos tempos democráticos, depois da guerra, de tantos dignitários do regime.
Recentemente, vi um documentário sobre o "Lager" de Sobibor na Polónia Oriental que fazia parte da Operação Reinhard e onde ocorreu a única revolta de prisioneiros dos campos nazis, em 14 de Outubro de 1943. Desde a sua construção, embora toda a gente soubesse, os alemães tentaram camuflar Sobibor da população local, mas depois da evasão maciça na sequência daquela revolta, foi tentada a obliteração de todos os vestígios. Modernas escavações trouxeram à luz a horrenda realidade. Como nos outros casos, por toda a Europa, o massacre tinha entrado na "ordem natural das coisas" e a arqueologia trouxe algumas provas patéticas nas garrafas de cerveja que bebiam os guardas, enquanto ao lado se gazeavam as vítimas de todas as idades. No fundo, a mesma situação daquela família tipicamente alemã que vemos no filme de Glazer. Para a compreender, feliz ou infelizmente, não temos de imaginar monstros nenhuns. Nenhum Drácula ou Caligari.
Documentários como esse passam frequentemente no canal franco-alemão "Arte". Basta nos pormos na pele do mais insignificante herdeiro do Reich para perceber que o "juízo final" não fez esquecer nada, e isso vê-se na resposta complexa e complexada do governo alemão ao morticínio de Gaza.
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