António Mesquita
"O 'Führervernichtungsbefehl' é uma coisa terrível. Paradoxalmente, é quase como uma ordem do Deus da Bíblia dos judeus, não é verdade? Agora vai, fere Amalek! Vota-o ao anátema, com tudo o que possui, sem piedade perante ele, mata homens e mulheres, crianças e crianças de peito, bois e ovelhas, camelos e asnos.
Você conhece o texto, vem no primeiro livro de Samuel. Quando recebi a ordem, foi isto o que pensei. E como lhe disse, penso que é um erro, que deveríamos ter tido a inteligência e a capacidade de descobrir uma solução mais... humana, digamos assim, mais em conformidade com a nossa consciência de alemães e de nacionais-socialistas. Neste sentido, é um fracasso." ("As Benevolentes" de Jonathan Littell)
As Benevolentes são as Euménidas de Ésquilo (525 a.C) na trilogia "Oresteia", depois de terem sido as Erínias, as Fúrias que perseguiam o herói com todo o mal que podiam como executoras do juízo supremo de Zeus, pelo assassínio de Clitemnestra, a mãe de Orestes, culpada aos olhos do filho de ter assassinado o pai, o chefe dos exércitos, Agamemnon.
A justiça do pai dos deuses não seguiu o seu curso até à execução de Orestes, porque o poder não unificado da mitologia grega como que acolhe a complexidade do mundo. Uma filha de Zeus, Atena, protege o matricida. E é por isso que as Fúrias se transformam em Benevolentes, sob a figura das Euménidas.
Este intróito é necessário para explicar o título e a trama do Goncourt de 2006, "Les Ɓienveillantes" de Jonathan Littell, um americano, nascido em 1967, que estudou em Paris e escreve em francês.
As mais de oitocentas páginas deste "roman-fleuve" descrevem as peripécias da vida dum jovem alemão, Maximiliano Aue, que atravessa a segunda guerra mundial na pele dum nazi, culto e racional, o contrário dum espírito dogmático, aberto às dúvidas e às inquietações do tempo que um ocidental não filiado no NSDAP poderia partilhar até um certo ponto.
O livro está escrito em andamentos como uma partitura musical, ou não fosse Aue um melómano, entusiasta de Bach, de Schönberg e dos franceses do século XVII, como Rameau e Couperin.
A peça de Ésquilo dá o mote às motivações pessoais do narrador, em que estão presentes o incesto a idealização do pai e o ódio matricial. Alguma complacência narcísica afecta a descrição das suas experiências incestuosas e homossexuais. Esses temas são como que o fundo compulsivo do narrador e são vividos, tal como o matricídio como que por um outro.
O posto de Aue leva-o a presenciar algumas das piores atrocidades dos SS e a sua participação nos crimes é quase maquinal, como quando "acaba" a liquidação de judeus nos fossos do tipo "lata de sardinha", em camadas sobrepostas. Esse funcionamento automático, como roda da engrenagem, é apresentado como facto indiscutível, e "justificado" pelas necessidades da guerra e consequência de algumas tomadas de decisão erradas, mas forçadas pelas circunstâncias.
Não se pode levar mais longe a negação da liberdade individual e o peso determinante das forças sociais e do não-humano. Como diria Bruno Latour (*), o transcendente do social e o da natureza convivem, paradoxalmente, com a imanência, a ideia de que somos senhores dos nossos actos e que podemos utilizar as forças naturais segundo o nosso alvedrio.
O que é novo neste romance contra a corrente é esta vontade de nos pormos na pele de autores ao mesmo tempo voluntários e involuntários dos crimes mais hediondos, pela sua organização sistemática, cometidos alguma vez por seres humanos. A abstracção que os justifica como necessidade da nação, do "volk", que foi buscar inspiração a alguma poesia translida e a filósofos traídos como Nietzsche, é apenas mais uma ilustração da ideia de Hannah Arendt da "banalidade do mal". O mal não é um abismo raro e insondável, mas pode tornar-se quotidiano e prosaico.
O mérito de Littell é obrigar-nos a compreender, através duma minúcia quase fractal, que exigiu um trabalho de pesquisa admirável, como se pode pensar e fazer o mal radical quase sem nos envolvermos, numa superficialidade que não é outra coisa que a falta de penetração da verdade. Como o actual conflito em Gaza o demonstra pode-se com toda a boa consciência confiar à Inteligência Artificial a escolha dos alvos e massacrar com toda a limpeza e o profetismo duma sentença bíblica.
A aparição das Euménidas, no caso de Aue, que foi capaz, depois da guerra, de refazer a sua vida como fabricante de tecidos de renda, conforme o exemplo de tantos dignitários e membros do partido nazi é, no fundo, o reconhecimento de que não somos dignos da responsabilidade total implicada na ideia de liberdade.
Ter nascido na Alemanha e no leste europeu há cem anos foi uma grande maldição e não só para os judeus. Só se salvaram os que fugiram a tempo. Basta imaginarmo-nos nesse lugar e nesse tempo para perdermos toda a boa consciência.
(*) "Nous n'avons jamais été modernes" de Bruno Latour
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