Marques da Silva
Para montante do Pinhão, o Douro dispensa a companhia das estradas, concede em relação ao caminho-de-ferro, desde que a linha rompa a pedra dura da montanha e se deixe engolir pelas entranhas desta, espreitando aqui e ali para deleite de quem viaja face à natureza que se deixa surpreender em cada recanto. As estradas envia-as para o planalto, tanto a Norte como a Sul. Voltamos a atravessar o rio à procura da nossa N222 e iniciamos a subida, afastando-nos da leveza da água que viveu connosco os cento e cinquenta quilómetros anteriores. Não é uma escalada, é mais uma subida patamar a patamar ou para não descolarmos da paisagem aqui tratada por mão humana, socalco a socalco, volteando por entre quintas e casas isolados. O rio só o voltaremos a encontrar mais uma vez, antes do fim. Elevamo-nos em altura e afastamo-nos para Sul. O nosso olhar vadia agora entre as cores das folhas da vinha, o verde perdendo espaço para os vermelhos, amarelos e castanhos, numa mistura de encanto irrepetível em cada degrau da montanha que vai descendo como uma cascata. A cor da terra, os muros de xisto, há algo nesta envolvência que nos prende, nos arrebata, nos faz aparecer o mundo com uma candura que nos embala e consola a alma. Os Deuses aprimoraram a mão na construção deste palácio de natureza que parece inovar a cada horizonte que ao nosso olhar se oferece. Os quase riscos brancos que perturbam o azul parecem um esboço de figuras que estão para nascer, uma pincelada que não estraga nem dilui o anil que cobre o fundo como uma protecção do que em baixo se expõe. Ainda estamos longe do cimo da escalada quando paramos no segundo miradouro, um palco onde nos podemos deter e deixar que os olhos absorvam o painel extenso que se estende à nossa frente. São momentos de silêncio, de repouso, sem os atritos da vida nem os obstáculos que a humanidade cria a si própria, pese embora a efemeridade do tempo que nos é concedido viver. A curva delicada do rio, a suavidade das encostas que à distância parecem nuas das cores que fazem nascer o vinho, o matiz da terra num acastanhado acobreado, a pequena vila do Pinhão ao longe, onde o Douro se esconde numa outra curva fechada, o sossego das montanhas como cordilheira estendida, os tons de verde e o cromático das folhas que apresentam o início do Outono. Há bonança nesta perfeição que vemos, desenhada com cuidado e temperança, com o brilho de quem não sente perturbado o ambiente no momento da criação. De que necessita mais a humanidade para além desta natureza paisagística para obter o que tanto procura e parece quase não encontrar, esse estado a que ela própria define como ventura, satisfação, alegria? E no entanto, se deslocarmos o pensamento para além deste horizonte, só vislumbramos sombras, céus plúmbeos, Deuses impiedosos servidos por fanáticos de mente deformada e demente desenterrando passados bíblicos, fantasias ficcionadas em nome das quais arrasam tudo o que não se conforma com os seus pesadelos. Como podemos deixar que a história se repita a cada século?! Como é possível é a pergunta que nos acompanha por estes dias, sem resposta, sem solução e com a convicção que estes alienados podem vencer, impor a sua loucura, pouco se importando se enterram, povos, história e a própria humanidade. E podem vencer porque se sentem apoiados “pelos senhores à força, mandadores sem lei” que desfilam pelos seus palácios para servir em taças douradas o fel do seu poder desmedido, sem se darem conta que o chão a seus pés se derrete levando-os de vez para o altar do inferno, mas com o risco de arrastar a humanidade para esse flagelo. Olhando com a alma embotada pelos pensamentos, apelamos à música de Savall dedicada aos Bórgia, aquele lamento desesperado na morte de Lorenzo O Magnífico, o pranto e a dor misturados numa nascente de água jorrando pelas faces, caindo desamparada na pedra nua, “quem trará água ao meu manancial? Quem será a fonte de lágrimas para os meus olhos, para chorar de noite e de dia”. No canto e nos sons da música, pressente-se o grito das pedras da calçada quando o lúgubre cortejo passa. É um grito humano face ao destempero mental de vampiros sedentos que só saciam a sua raiva violenta no desprezo brutal por tudo quanto é a vida. De novo, e mais uma vez, voltamos a saber por quem os sinos dobram. Não queremos, nem desejamos sair do êxtase deste desenho tão natural e tão belo com a música soberba criada pelo catalão. Sacudimos a alma com desespero para acordarmos deste pesadelo e em voz alta dizemos, para nos separarmos desta realidade tão abrumadora, “Ó meu amor, não acredites na vida mesquinha, não duvides. Dá-me a tua mão e vamos partir por essa estrada fora direitos ao céu!”(1). Ervedosa do Douro está ali a dois passos e a vila de S. João da Pesqueira um pouco mais adiante. São já terras beirãs no alto Douro. O seu património são as vinhas. Do ponto de vista arquitectónico não há muito para ver e sentir, não porque falte passado a estes espaços territoriais, mas antes por não serem local de passagem, mas de estio. Quando o caminho nos levar para Vila Nova, subiremos à aldeia de Trevões para encontrar o que está em registo, mas hoje, ficamos por aqui. Descobrimos a parte mais antiga desta pequena vila, um quase quadrado um pouco afastado da estrada com a sua Torre do relógio e uma mistura do antes com as melhorias do presente sem parecer que estraga ou desfeia.
[1] Raul Brandão em “Os Pescadores”, Frenesi, Lisboa, 2002
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