António Mesquita
O vilão do filme, Jean Fournier (um magnífico Melvil Poupaud), alguém que vive de "fazer mais ricos os ricos" gaba-se sempre de fazer a sua sorte que vamos saber depois, passa por contratar dois capangas para fazer desaparecer o seu sócio e ficar com a empresa e fazer o mesmo com o amante da mulher. Prepara-se para despachar a sogra que lhe descobriu o jogo num acidente de caça, quando é alvejado por engano por um caçador furtivo. A ironia forçada no caso deste marido que troçava da mulher por comprar uma lotaria...
Como um Hitchcock filmado em Paris, o filme prende o espectador do princípio até ao fim, tal é a mestria da sua construção. Mas fica-se com a sensação que a espécie de justiça que nele triunfa - o mau é punido com o seu próprio mal, por obra e graça da deusa do acaso - não corresponde à experiência comum. Se Jean salvasse o seu casamento com mais um crime às costas, o mundo não deixava de ser o que é. É o espectáculo de todos os dias em toda a parte: a roda da sorte não favorece justiça nenhuma, a não ser na lotaria.
O filme de Allan é um divertimento bem conseguido e o que é o cinema do mestre inglês do suspense? Neste tempo em que as audiências desertaram as salas de cinema em favor do "streaming" de pantufas, herança dos tempos do Covid, só 2% da produção dos estúdios franceses, por exemplo é que que deram algum lucro. O grande cinema tem os dias contados se só contar com o mercado.
Como em obras anteriores, "Match Point" (2005) é o que me ocorre de momento, o conceito de sorte tem merecido a atenção do realizador. A multidão de adeptos da "raspadinha" estão aí para testemunhar a sua actualidade.
Em "Guerra e Paz", Tolstoi consagra um capítulo a meio da obra, num arriscado àparte da empolgante narrativa, a esse tema. Por que se deslocaram as forças de vários países europeus para leste em 1812, o ano em que Napoleão invadiu a Rússia? As ínumeras causas dos acontecimentos deixam transparecer a ideia de que ninguém realmente decidiu coisa nenhuma. Simplesmente, aquelas consequências tinham que seguir-se àqueles actos voluntários ou não da colmeia humana. Não se pode destacar a ambição do famoso corso, nem a susceptibilidade de Alexandre, o czar, por causa da desfeita francesa ao duque de Oldemburgo. Diz Tolstoi ( e podemos aceitar ou não a ideia da predestinação que o resultado é o mesmo): " Nos acontecimentos históricos, os chamados grandes homens são etiquetas que dão nome aos acontecimentos, e tal como as etiquetas, não têm senão a mais pequena relação com o acontecimento em si. Cada acto deles, que lhes aparece como um acto da sua própria vontade, é num sentido histórico, involuntário e relacionado com todo o curso da história e predestinado desde a eternidade".
Oiçamos Schopenauer: "Toda a nação troça das outras e todas têm razão." Razões é o que não falta às diversas partes nos vários conflitos mundiais neste momento. Era preciso decidir numa instância universal incontestávell que não existe. Mas em que seria diferente essa decisão do chamado "julgamento da História", isto é, se a justiça é diferente da "relação de forças", parece ser o resultado da distância no tempo e do esquecimento. Se não fosse o poema de Homero quem lamentaria Tróia?
Voltando a Woody, um crítico destacou que a certa altura, este divertimento envia mensagens subliminares à pessoa que assiste no escuro da sala. Como a obsessão com os combóios eléctricos de Jean que faz lembrar, a quem acompanhou o caso, que tal brinquedo figura nas alegações da filha adoptiva de Mia Farrow no célebre processo que envolveu o realizador há alguns anos atrás. A biografia entra subrepticiamento num enredo hitchockiano, como uma assinatura invisível.
Cito as palavras de Owen Gleiberman sobre "Coup de Chance": "(...) O crime diz bem com Woody Allen. Já sabíamos disso, naturalmente. Sabíamos desde "Crimes and Misdemeanors", o drama que se tornou chocante quando apareceu em 1989 - e se o virmos hoje, é ainda chocante, porque o tema do filme não é só que as pessoas normais cometem crimes (vemos isso todos os dias no cinema). É que elas parecem perturbantemente normais quando o fazem. Martin Landau como um suave oftalmologista burguês que contrata alguém para matar a sua amante parecia representar a torcida essência de todo o criminoso amador, e o facto de que ele se safou é a parte inquietante. Faz-nos pensar: quantos pessoas como essa andam por aí?"
Diferentemente, neste "Golpe de Sorte", o criminoso não se safou. Foi apanhado pela má sorte, o que a meu ver diminui o filme.
O pensamento do cineasta sobre a vida, certamente motivado pelo a sua experiência pessoal, expressa-se nestas palavras que uma vez proferiu: " Life is full of misery, loneliness, and suffering, and it’s all over much too soon". Todos gostaríamos de acreditar que pelo menos a sorte tem uma venda nos olhos.
Mas Woody Allen não é talvez um bom guia. Allan Bloom acha que a palavra "eu' é de difícil definição e que "quando Woody Allen se dispôs a ajudar-nos, tornou-se ainda mais difícil fazê-lo." (*)
(*) "The closing of the american mind"
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