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01/10/23

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



Atravessamos o Douro, da Régua para a N222, pela nova ponte metálica para uso de peões e velocípedes. A meio do percurso, voltamo-nos para o local que deixávamos e procuramos o Peso na encosta, a cidade alta, aquela que primeiro olhou o rio. A Régua, essa chegou do mar, veio com o comboio, com a sua paragem, que a fez nascer e crescer e alcançar o Peso que sobranceiro dominava a paisagem. Agora é o Vinho que lhe dá grande parte da vida. Quando o olhar se volta para Leste na procura da estrada que nos leva, aparece majestática e pesada face à natureza que a rodeia, a ponte da auto-estrada a que deram o nome do poeta imenso da região das fragas e socalcos e logo nos assalta o pensamento o seu depoimento em poemário, “De seguro, / posso apenas dizer que havia um muro / e que foi contra ele que arremeti / a vida inteira”. As também palavras de Miguel Torga na visita ao mosteiro de Santa Maria das Júnias, deixam-nos sempre no umbral do deslumbramento quando descreve o cenário e refere-se aos monges que ao longo de centúrias ali penaram com “O corpo a magoar-se contrito no cilício quotidiano da realidade e a alma a ouvir de antemão, enlevada, a música da eternidade” (1). Hoje o poeta observa da altitude da ponte que leva o seu nome, o seu Douro inesquecível. A N222, como muitas das estradas construídas durante os anos de chumbo, segue os contornos da paisagem, perde-se em curvas e contracurvas, mas evita despesas com construções que pudessem melhorar o traçado e diminuir riscos. Durante longos anos, percorrê-la era um gasto de tempo e um risco de vida, mas poupava o regime para as suas contas certas e o atraso do país, mas a partir da Régua, o traçado altera-se, alonga-se em rectas num patamar nivelado, entre a montanha e o caudal do rio. O património arquitectónico escasseia, mas sobra em natureza, em paisagem, em horizonte de beleza. Deixamos a Rota do Românico e embrenhamo-nos na Rota do Vinho do Porto. Até Bagaúste quase não há espaço para a estrada e o rio parece um ribeiro manso em tempo de Verão e quase não se acredita na sua navegabilidade. A partir da barragem é como se pudéssemos abrir os braços e assalta-nos como uma espécie de alegria. Não há habitações e as Quintas debruçam-se no pináculo das encostas por onde se chega trepando por íngremes caminhos. Uma entidade internacional descreveu os vinte quilómetros seguintes como uma das mais bonitas estradas do mundo. Sente-se essa delícia quando se viaja neste espaço. A montanha desdobra-se como as dobras de um lençol, rasgadas em socalcos que nesta época se desembrulham num painel de cores irrepetível. No lado oposto, o granito que se derruba sobre as águas só deixa lugar para a linha ferroviária e em certos espaços nem para ela há lugar tendo de rasgar caminho pelo interior daquela muralha de pedra, mas é tudo isto que engrandece o que os olhos contemplam. Por vezes a sequência montanhosa aceita um rasgão para a passagem de um pequeno afluente do grande rio e vemos pequenas estradas e nomes de lugares que se acham em vales perdidos ou entre desfiladeiros que se comprimem. Em Folgosa, sente-se uma abertura, o Douro alarga-se e parece imobilizar as águas, e o azul com o verde predominante e terra à mistura levam-nos para uma outra dimensão temporal. É impossível não parar, olhar o horizonte oposto e aguardar a passagem do comboio na outra margem. Há uma espécie de neblina que apaga os sons e a velhinha 1413 passa como um fantasma que desliza na luz celestial da tarde. A imobilidade que sentimos fez-nos lembrar palavras que lemos algures, “A alegria é imperecível, pensei, e a dor apenas nos recorda o belo que em nós se reflecte em imagens efémeras e que voltamos a amar em cada hora que uma imagem de idêntica beleza desperta o nosso olhar. Queremos detê-lo, dele nunca mais nos apartar. E então ele mergulha no nosso coração e converte-se em recordação, como tudo o que possuímos, a que aspiramos e que reencontramos”(1). Deixamo-nos ir, vagarosamente, como se uma necessidade nos empurrasse e uma vontade nos detivesse. Na foz do Távora paramos em meditação, da extensão do rio, no trabalho humano para domesticar a natureza e a força desta na resistência a persistir como nasceu. A luta hercúlea entre ambos gera cenários como aqueles que o Douro vive na sua lenta procura do mar. A nós que viajamos aparece-nos como um anfiteatro que nos gera um sentimento emocional que nem sempre podemos explicar ou explicitar. É um embevecimento sem limites. “Mas era precisamente a similitude da beleza que tanto me comovia, a pureza do ar, o resplendor sobre as montanhas, a serena jovialidade da terra e da bendita abundância, o suave sopro do azul”(1). Na foz do Rio Torto, deixamos a N222 e percorremos os dois quilómetros que nos separavam da pequena vila do Pinhão. A estrada perdeu fulgor, tornou-se numa pequena via, estreita e não fosse a paisagem que a rodeia, não teria encanto. Talvez por isso, levamos o olhar na margem oposta e deixamos o pensamento vadiar, em razões de reflexão sobre o sentido da vida e da morte, “Então voltamos a habituar-nos à ideia de que a nossa Terra também continua a sua interminável rotação, enquanto nós caminhamos para o nosso fim corpóreo e tudo o que fazemos é efémero”(1).


[1] Annemarie Schwarzenbach em “Escritos Africanos”, Relógio D’Água, 1ª edição, Lisboa, Março de 2023

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