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01/10/23

ALÔ? ALÔ?

António Mesquita

Marcel Proust, ao estilo de Picasso, pela I.A.


"Como todos nós agora, eu já não achava suficientemente rápida, nas suas bruscas mudanças, a magia admirável à qual alguns instantes chegam para que apareça junto de nós, invisível mas presente, o ser com quem queremos falar, e que permanecendo à sua mesa, na cidade que habita (para a minha avó era Paris), sob um céu diferente do nosso, com um tempo não forçosamente o mesmo, no meio de circunstâncias e de preocupações que nós ignoramos e que esse ser nos vai dizer, se acha de repente transportado a centenas de léguas (ele e todo o ambiente em que continua mergulhado) para junto da nossa orelha, no momento em que o nosso capricho o ordenou." (*)

Marcel admira-se do milagre do telefone, que desde o final do século XIX, lhe permite , através da voz, ter junto de si a presença do ente querido que está, noutra cidade,  a muitos quilómetros de distância. 

Acho que, com a habituação e a banalidade dessa ferramenta, hoje nós perdemos o sentimento desse "milagre". A voz que nos chega pelo smartphone é algo de desligado do ser que convocamos. Não vem à nossa presença a pessoa que fala do outro lado. Já Mc Luhan, o mediólogo canadiano dizia "medium is message". Quer dizer, neste caso,  o telefone mais do que transmitir a palavra à distância, modifica, subtilmente, a nossa relação com os outros. 

O mesmo se estará a passar com a imagem, a extática da fotografia e a que mexe do vídeo que hoje entraram na nossa vida graças à fada da tecnologia. O alvoroço com que recebemos estas inovações gastou-se depressa. E o que nos parecia um enriquecimento da nossa experiência e da nossa memória cedo nos deixa a sensação do logro, porque esses suportes nunca substituirão a realidade, nunca nos aproximarão dos vivos, nem nos trarão de volta os mortos.

Um efeito inesperado desses novos meios de comunicação é o de esquecermos mais depressa o que é importante e de perdermos, sem nos apercebermos disso, o acesso ao passado. As imagens tornam-se efígies das pessoas que representam, "protegendo-as", se já não fazem parte do mundo dos vivos, de eventuais intromissões no seu "sono eterno".

Era essa, talvez, a primitiva função dos túmulos - a de protecção contra os espíritos e, nalguns casos, de preparação para a outra vida.  Suleiman, um dos chefes muçulmanos que, segundo Chateaubriand, se encontrou com Napoleão no interior da grande pirâmide, terá dito nesse cenário, referindo-se ao famoso faraó: "Era um poderoso rei do Egipto, cujo nome se crê ter sido Quéops. Ele queria impedir que qualquer sacrilégio viesse perturbar o repouso da sua cinza."

Dou-me conta, nesta altura, e depois de ter grifado algumas palavras para obviar ao seu sentido literal e "démodé" que nem assim me livro de leituras desviantes. Precisaria de usar mais aspas,  menos porque a nossa é, claro, a "era da suspeição", mas porque a avalanche da informação desvalorizou a tal ponto o sentido "consagrado" que só nos resta ser prolixos. 

É ainda, como se percebe, o problema que enunciei com a citação de Proust.
Não se trata de maldizer a tecnologia que é parte do chamado progresso. Feliz ou infelizmente, só podemos constatar que é ele (ou o sistema de que faz parte) que nos conduz inexoravelmente ao desconhecido. 

Como dizia Raul Brandão, "sejamos humildes, porque a gente chega ao fim da vida sem ter entendido nada deste mundo, quanto mais do outro..." 
  
O outro mundo do Raul não é o dos almas penadas. Num certo sentido, é  o mundo novo com que tantos sonharam.

(*) Marcel Proust, "Du Côté de Chez Guermantes"

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