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01/09/22

LIÇÕES DE MESTRE (6)

Mário Martins

https://www.fnac.pt/Sete-Breves-Licoes-de-Fisica-Carlo-Rovelli/



Agora que os iludidos pela parafernália tecnológica têm razão para se sentirem defraudados pela constância fundamental do comportamento humano em sociedade, empestado pelo etnocentrismo e pelos apetites imperiais, que o leva a praticar os actos mais horrendos que nenhum bem pode redimir, a Física, para lá do papel central que desempenha na evolução do conhecimento, torna-se um refúgio calmo, embora exigente.

A PROBABILIDADE, O TEMPO E O CALOR DOS BURACOS NEGROS

À margem das grandes teorias que descrevem os constituintes elementares do mundo, existe um outro grande castelo na física, um pouco diferente dos outros. A pergunta da qual inesperadamente nasceu é: “O que é o calor?”

Até meados do século XIX, os físicos tentavam compreender o calor pensando que se trataria de uma espécie de fluido, o “calórico”, ou dois fluidos, um quente e outro frio, mas a ideia veio a revelar-se errada. Até que Maxwell e Boltzmann perceberam que uma substância quente não é uma substância que contenha fluido calórico. Uma substância quente é uma substância em que os átomos se movem mais depressa. Os átomos e as moléculas, agrupamentos de átomos ligados, estão sempre a mover-se. Circulam, vibram, ressaltam, etc. O ar frio é ar em que os átomos, ou melhor, as moléculas, circulam mais devagar. O ar quente é ar em que as moléculas circulam mais depressa.

O calor, como sabemos, vai sempre das coisas quentes para as coisas frias. Mas porque é que o calor vai das coisas quentes para as coisas frias e não o contrário? O motivo foi descoberto pelo físico austríaco Ludwig Boltzmann e é surpreendentemente simples: é o acaso. A ideia de Boltzmann é subtil e põe em jogo a noção de probabilidade. O calor não vai das coisas quentes para as coisas frias obrigado por uma lei absoluta: vai apenas com grande probabilidade. O motivo é que estatisticamente é mais provável que um átomo da substância quente, que se move depressa, embata contra um átomo frio e lhe deixe um pouco da sua energia, do que o contrário. Não é impossível que um corpo quente aqueça ainda mais ao entrar em contacto com um corpo frio: é só extremamente improvável. Boltzmann não foi levado a sério por ninguém, como é frequente. Acabaria por se suicidar (assoberbado por uma grave neurastenia e por uma progressiva perda de visão de que padecia há anos) a 5 de Setembro de 1906 em Duíno, perto de Trieste (em cujo castelo, o poeta lírico, boémio-austríaco, Rainer Maria Rilke, começaria a escrever, poucos anos mais tarde, as célebres “Elegias de Duíno”), enforcando-se, sem assistir ao reconhecimento universal do acerto das suas ideias.

A probabilidade em jogo na ciência do calor está, em certo sentido, ligada à nossa ignorância. Eu posso não saber algo de forma completa, mas atribuir-lhe uma probabilidade maior ou menor. Pensem num balão cheio de ar. Posso medi-lo, medir-lhe a forma, o volume, a pressão, a temperatura… Só que as moléculas de ar circulam depressa no interior do balão e eu não conheço a posição exacta de cada uma delas. Isso impede-me de prever com exactidão como se comportará o balão. Mesmo não podendo prever tudo exactamente, posso contudo prever a probabilidade de que isto ou aquilo aconteça. Será muito improvável, por exemplo, que o balão voe para fora da janela, rode à volta do farol ali ao fundo e volte depois a pousar na minha mão no ponto de partida. A probabilidade de nos choques das moléculas o calor passar do corpo mais quente para o  mais frio pode ser calculada e revela-se extremamente maior do que a probabilidade de o calor voltar para trás. A parte da física que esclarece estas coisas é a física estatística, e um dos triunfos da física estatística, a partir de Boltzmann, foi o de compreender a origem probabilística do comportamento do calor e da temperatura, isto é, a termodinâmica.

No decurso do século XX, a termodinâmica, isto é, a ciência do calor, e a mecânica estatística, isto é, a ciência da probabilidade dos diversos movimentos, foram alargadas igualmente aos campos electromagnéticos e aos fenómenos quânticos. O alargamento ao campo gravitacional, todavia, revelou-se complicado. O campo gravitacional é o próprio espaço, ou melhor, o espaço-tempo, logo, quando o calor se difunde no campo gravitacional, têm de ser os próprios espaço e tempo a vibrar… só que ainda não sabemos descrever isso muito bem.

O que explica o facto de para nós o tempo “correr”, “passar”, “fluir”? A indicação de resposta chega-nos da estreita ligação entre o tempo e o calor, o facto de que só quando há um fluxo de calor o passado e o futuro são diferentes, e do facto de o calor estar associado às probabilidades em física, e estas, por sua vez, ao facto de as nossas interacções com o resto do mundo não distinguirem os pormenores finos da realidade. Perante uma hipotética visão aguçadíssima que tudo visse, não haveria tempo “que corre” e o universo seria um bloco de passado, de presente e de futuro. Mas nós, seres conscientes, habitamos o tempo porque vemos apenas uma imagem esbatida do mundo. É deste desfocamento do mundo que nasce a nossa percepção do correr do tempo.

Está claro? Não. Há muito mais por perceber. Um indício para enfrentar o problema vem de um cálculo efectuado pelo físico inglês Stephen Hawking. Recorrendo à mecânica quântica, Hawking conseguiu demonstrar que os buracos negros estão sempre “quentes”. Emitem calor como um aquecedor. Eis o primeiro indício concreto do que possa ser um “espaço quente”. Nunca ninguém observou esse calor porque ele é muito fraco nos buracos negros reais que vemos no céu, mas o cálculo de Hawking é convincente, foi repetido de muitas formas diferentes, e o calor dos buracos negros é geralmente considerado real. Ora, esse calor dos buracos negros é um efeito quântico sobre um objecto, o buraco negro, que é de natureza gravitacional. São os quanta individuais do espaço, os grãos elementares de espaço, as “moléculas” que ao vibrarem aquecem a superfície de um buraco negro e geram o calor dos buracos negros. O calor dos buracos negros é uma Pedra de Roseta, escrita a cavalo de três línguas – Quanta, Gravidade e Termodinâmica -, que aguarda a sua decifração, para nos dizer o que será de facto o correr do tempo.

Resumindo: o calor de uma substância é gerado pela circulação mais rápida das respectivas moléculas, e não por um hipotético “fluído calórico”. O calor vai, com grande probabilidade, das coisas quentes para as coisas frias, mas o contrário, apesar de extremamente improvável, não é impossível. Não sabemos ainda descrever a difusão do calor no campo gravitacional, isto é, no espaço-tempo. O “passar” do tempo que nós experimentamos não emerge da descrição física exacta do estado das coisas (onde, no dizer de Einstein, a distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma persistente e teimosa ilusão), mas das ciências da estatística e da termodinâmica, que traduzem apenas uma imagem esbatida do mundo. O que não quer dizer, evidentemente, que não envelheçamos e morramos…

NB: Tal como nas lições anteriores, este é um resumo livre da 6ª. lição de Carlo Rovelli, querendo com isto dizer que para lá das muitas transcrições praticamente literais da obra,  mistura algumas “liberdades” de um curioso da ciência, esperando, com isso, não ter atraiçoado o sentido desta e das outras lições. Dada essa mistura, não foram colocadas entre aspas as transcrições da obra. 

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