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01/09/22

A FELICIDADE CONJUGAL

António Mesquita




"Mesmo em traduções defeituosas, a sua lírica, novelas e contos são indispensáveis. Não é fácil imaginar o reportório dos nossos sentimentos e comum humanidade sem eles. Historicamente breve e limitada como é em termos de género, a literatura russa partilha esta impressionante universalidade com a antiga Grécia." (George Steiner)



Os dias calmos em que nada se passa, como sempre nalguns romances russos. A natureza empresta as cores e as estações à alma que se salva do aborrecimento. Oh! nunca a lua contemplada duma varanda se compara a qualquer outra literatura. As personagens vivem uma convalescença que é toda a felicidade. Os velhos povoam a casa com a sua presença benéfica e protectora. São criados e amas que andaram connosco ao colo. Nessas enormes casas de campo há sempre tímidos e com uma diferença de idades a vencer. É por causa disso que o homem não concebe a esperança e se esconde no papel do mestre e do amigo. Tolstoi casou com 34 anos. Pelo seu lado a jovem mulher, longe da sociedade que a tornasse vaidosa e frívola, sente-se indigna de inspirar amor. Aos primeiros sinais da sua intuição, como naqueles silêncios a que o magistério se remete, inútil ante o sentimento que extravasa do olhar, ou num passeio nocturno com Kátia, pela álea das tílias, quando só falta uma palavra para mudar o mundo, Macha ganha confiança e procura por si a perfeição. Torna-se boa para as pessoas. Visita os camponeses pobres. Deixa dinheiro na janela e foge. Por fim, Serguei vem anunciar-lhe a sua partida, mas só espera um protesto e uma revelação. Ele julga-se velho e sem direito a colher aquela flor de dezoito anos!

O que o grande Leon Nikolaevitch nos vai contar a seguir é como o casamento e o hábito vão mudar este amor primaveril. Os primeiros tempos são de adoração mútua, de risos infantis e companhia absorvente. Os amantes vivem em estado de graça. Serguei não consegue recusar nada. Um amuo inesperado surge porque ele não lhe contou logo o que se passara na polícia, por causa dum dos seus mujiques. Macha não quer ser tratada como uma criança. Quer viver a vida dele. E eis o logro. Embora no fundo contrariado, o marido leva-a aos bailes de St. Petersburgo onde faz sucesso. O seu interesse demasiado pela vida mundana desgosta Serguei que se convence que Macha não pode já mais ser feliz na aldeia. É ainda o antigo medo do fosso de idades. Resigna-se a perdê-la porque é muito jovem. O casamento foi um erro.

Um incidente que atrasou a partida para St. Petersburgo faz rebentar o diques das emoções. Dizem-se coisas irreparáveis. Macha descreve o que diz como se fosse inspirado por um espírito maligno. No fim da cena, sente que o odeia. Serguei recuperou toda a distância e toda a frieza dum estranho. Ouvira com uma perfeita indiferença. O seu rosto pareceu-lhe gasto de repente.

Passam anos, vêm os filhos neste ménage civilizado, mas sem alma. Macha que se desiludiu dos salões e do brilho da grande cidade, vive a sua própria vida. Evitam estar sós a princípio, mas acabam por perceber que a presença do outro não traz nada de novo. Numa temporada na casa de solteira, com a chuva molhando as árvores e o cabelo, Macha prende a mão do marido. É a explicação de todos esses anos. Mas regressar ao passado não é possível, mesmo se fosse bom. Aquela paixão egoísta teve o seu tempo. Beijam-se, mas o mundo espera. Os olhos de Serguei contemplam e são contemplados. A vida continua, em paz.

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