António Mesquita
Um objecto inteligente, deliberadamente construído, deve poder ser julgado segundo os fins que se propõe. Porque estamos a falar de cinema, segundo critérios tais como o desfrute do espectador ou a sua instrução, enfim, segundo a medida do que é admissível para a sua percepção e sensibilidade.
A propósito deste filme em que algumas opções técnicas são adoptadas de início, como um filtro, e impõem um tempo penoso para quem não foi advertido de que se trata duma aposta na capacidade de resistência do espectador habitual, uma inconveniência, um desrespeito das regras, como são os planos sequência em que a câmara deixa acontecer a acção no seu enquadramento sem se mover, para além do que comanda uma cronologia desconhecida. Mas claro que há uma interpretação mais sofisticada, como a de procurar ver no filme uma experiência sobre o tempo, não o da narrativa, mas a dum tempo não kantiano, associado a uma informação sobre o Além "que nunca poderá ser afirmada como existente ou significar algo correlacionado com um saber. A partir daí poder-se-ia pensar numa subjectividade que pode estar em relação com o que não se pode realizar, não com o irrealizável romântico, no entanto: com uma ordem acima ou para lá do ser." (Emmanuel Levinas in "Dieu, la Mort et le Temps")
Tilda Swinton é a actriz filiforme e distante para representar nesses planos panorâmicos e estáticos, sem que o grande plano a apoie em qualquer acentuação dramática, a figura necessária à abstracção programada. O enredo resume-se em poucas palavras. Jessica é botânica na Colômbia, onde visita a irmã no hospital e em que conhece um engenheiro misturador de sons que tenta reproduzir o som que a persegue, uma espécie de estampido duma massa de concreto em fundo metálico, que não a deixa dormir e afecta a memória e o sentido da realidade. Algumas cenas como a dum concerto de rock, dum grupo a que estaria ligado o dito engenheiro, são apresentadas até ao fim, sem contemporizações de espécie alguma. Um encontro com um camponês excêntrico desvenda o que eu chamaria de conotação cientológica (é verdade que depois de rever "The Master", de Paul Thomas Andersen, esse me parece um dos trilhos na moda de alguma cinematografia). Ele vive na sua horta sem querer saber do resto do mundo. Dorme sem sonhos, como numa antecipação da morte. Nasceu como um terceiro que vagueia no espaço e se introduziu na união dos pais. Compreende Jessica e o seu som traumático. Quase até aos últimos minutos deste filme desconcertante, tenho a opinião que é dum pretensiosismo vulgar e impertinente. Mas, enfim, como um "deus ex machina", da floresta colombiana arranca com o famoso estampido o que aparece ser uma nave alienígena, e o "silêncio" e os sons do mundo voltam aos ouvidos de Jessica. Mais uma reincidência na teoria da simultaneidade dos tempos e da transmigração das almas.
Um objecto estranho como este, um objecto não identificado e cujo mérito pode ser o de nos pôr a pensar, sem dever grande coisa à história do cinema e à obra dum Antonioni, por exemplo, que é o primeiro educador de outra duração para o espectador, suscita uma intrigante unanimidade da crítica que o supervaloriza, aos meus olhos. O que é que nesta "estratégia" resulta numa espécie de suspensão do juízo crítico? Como se uma "mania" estivesse algures motivando tantos especialistas do cinema? É aqui que a questão da inteligência, neste filme do tailandês Apichatpong Weerasethakul, que não pode ser, nem de longe, o critério para apreciar uma cinematografia, parece intimidar a maior parte dos que lhe dão cinco estrelas.
Na origem, uma ideia (cientológica ou da mesma família) que se desenvolve ao longo do filme, num compasso que podia ser o da relatividade do tempo e chocante o suficiente para provocar a sensação disso. Enfim, um filme de tese que não soube, quanto a mim, encontrar os meios expressivos adequados.
SOBRE A GUERRA NA UCRÂNIA
Quando há 31 anos se dissolveu a URSS para assombro de quase todos, muitos pensaram que era o fim da história e que se não se tinha evitado o caos, a tragédia duma guerra a partir do segundo maior arsenal do mundo pelo menos não estava no horizonte. Mas foi só o tempo (trinta anos é um salto de pardal na crónica histórica) do gigante "passar pelas brasas" e o mau sonho revisitar a cabeça dum homem com todos os poderes. Freud chama-lhe o retorno do recalcado. A palavra-chave aqui, mais uma vez, como nos anos trinta do século passado, é humilhação, a humilhação do forte.
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