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01/03/22

BALADA DO CRESCIMENTO

Mário Martins



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Em 2017, 5% dos mais ricos concentravam 42% da riqueza (patrimonial) em Portugal, e em 2019, 10% da população com maior rendimento (declarado) amealhava um quarto do rendimento total do país.”  Expresso, 28Jan2022

Em 2020, mais de 2 milhões de pessoas em Portugal encontravam-se em risco de pobreza ou de exclusão social.”
Portal do INE 17Dez2021



1º. ACTO
O discurso político, aqui e lá fora, está saturado da afirmação da necessidade de (maior) crescimento económico, geralmente acompanhada da asserção de que, sem este, não é possível melhorar os salários ou proceder a uma mais equitativa repartição dos rendimentos.

Nesta visão, o rácio do Produto Interno Bruto por habitante seria o único indicador do desenvolvimento de um país, não importando a distribuição da riqueza e dos rendimentos. O Índice de Gini, que mede a desigualdade, não seria para aqui chamado.

Admitindo, teoricamente, que os salários aumentem mais em períodos de maior crescimento económico, não é difícil descortinar nessa repetida afirmação, se não uma peça do arsenal ideológico, pelo menos um vício de raciocínio. Com efeito, uma coisa é a riqueza produzida, outra os critérios da sua distribuição, independentemente da magnitude e variação daquela. 

É usual, por outro lado, fazer-se depender a possibilidade de melhoria dos salários do aumento da produtividade, mas é sabido que o incremento desta não tem necessariamente que ver com o aumento da produção. De facto, mesmo não aumentando o produto é possível reduzir os custos/hora, seja pela diminuição de custos não remuneratórios, seja por uma redução das sacrossantas remunerações do capital, e não, como tem sido prática corrente, pela prática de salários baixos e pela redução do número de trabalhadores.

É, portanto, falso o argumento de que só é possível aumentar os salários e distribuir mais equitativamente a riqueza e os rendimentos, com (maior) crescimento económico. 

2º. ACTO
De um ponto de vista mais vertical, digamos no linguajar da moda, tele-pilotando um drone, a busca de um incessante crescimento económico (a que não é alheio um desenfreado aumento da população mundial), exaure, pelo menos na sua forma actual, os recursos planetários e faz pesar sobre as nossas cabeças uma espada climática de maus presságios.

Na Revista Expresso de 4 de Fevereiro passado, o conhecido historiador israelita Yuval Noah Harari, baseando-se no estudo de diversos relatórios e trabalhos académicos, sustenta que é possível evitar as alterações climáticas catastróficas com uma factura económica de apenas 2% do Produto Interno Bruto mundial anual.

3º. ACTO
Politicamente, há problemas. As relações económico-financeiras tornaram-se de tal maneira intrincadas que o governo, de per si, tem pouca margem de actuação. Como é que Portugal pode não querer crescer quando todo o mundo quer? Ou como é que Portugal pode escapar à regra da competição entre empresas e países? E como é que o governo pode intervir nos níveis salariais praticados pelas empresas privadas, para lá de incentivar a contratação colectiva? Ou como pode imiscuir-se na remuneração do capital, se não pela via fiscal? 

Sem embargo, o governo pode empurrar para cima os salários, através de um progressivamente maior aumento do salário mínimo, e pode taxar os elevados rendimentos de vária natureza que hoje escapam ao Fisco, e extinguir o benefício de taxas minoradas sobre determinadas categorias de rendimento, visando, em ambos os casos, uma mais equitativa distribuição da riqueza gerada.

Realisticamente, porém, mantendo-se as grandes regras do jogo económico-financeiro transnacional, que só uma concertação entre os países mais poderosos poderá alterar, as medidas que o governo possa tomar, não podem deixar de ter em conta esse enquadramento, tanto mais sendo Portugal, como é, um país pequeno e uma economia sem expressão.

ÚLTIMO ACTO
Isoladamente, os governos, sobretudo dos países que não fazem parte do clube dos ricos, têm uma estreita margem de actuação no âmbito das regras económico-financeiras que não podem desrespeitar. Mas os povos não. É por isso que, quando as dificuldades e a desigualdade atingem níveis intoleráveis, rebentam revoltas e convulsões sociais, geralmente associadas a fenómenos de grande violência,  mais instigadas, nos dias de hoje, pelas redes sociais do que pelos partidos tradicionais (como ainda há pouco tempo aconteceu com o movimento francês dos coletes amarelos), abrindo desse modo, quiçá violento, contra a prática vigente, a válvula de escape do descontentamento social.

É o que, logicamente, se pode esperar do actual estado de coisas.

PS: Agora que a pandemia parece estar em fase de abrandamento e que a “bazuca” financeira europeia começou a funcionar, é tempo de o Presidente da República se voltar novamente para esse vírus social endémico que dá pelo nome “sem abrigo”, tornando a pressionar o Governo para a solução positiva da confrangedora situação das pessoas que jazem a sua vida de párias “na valeta ”. 



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