Marques da Silva
Os primeiros sinais da barbárie foram chegando nos últimos anos do século. Sentimo-los como uma explosão violenta, inesperada e sofredora. Dias e dias a fio e os pássaros amaldiçoados, aquelas aves necrófagas, sedentas e avarentas na sua rapina, voavam dia e noite sobre as planícies e a terra sagrada que te viu nascer. Li-o na profundidade do teu olhar de forma transparente e cristalina quando nos obrigaram a atravessar as montanhas a Sul. Os lábios fechados sem crispação, a pequena boina sobre os fios dourados do cabelo e dos olhos saindo em silêncio uma pequena queda de água límpida e o som distante do Tamo Daleko, “Lá longe, longe do mar, lá está a minha aldeia, na Sérvia, longe, onde o limão floresce amarelo, havia apenas um caminho para o exército sérvio”. A dignidade bombardeada, os mortos acumulados nesse cortejo infindável que persegue a humanidade. Mas a nossa vida prosseguiu serena, na rotina dos dias na sobrevivência do indispensável e seguimos o conselho de Brecht, foi ao fundo da rua, nada é connosco. Avançámos sossegados. Acabado o milénio, os tambores voltaram a tocar, dia e noite e ainda que ao de leve, acordaram-nos, chegamos a gritar, mas esse grito perdeu-se no vazio, as aves sinistras voaram de novo, sôfregas de sangue, insaciáveis, uma vez e outra, mas tudo continuava afastado, num outro tempo e lugar que não era o nosso. Não esquecíamos, mas ignorávamos, iludíamos a verdade que se mostrava na velha canção que dizia, “as bombas caem lá longe, mas amanhã poderão cair aqui”. Ah, mas a nossa terra é tão linda, tão aprazível, como poderiam cair aqui?! Quem permitiria que tal acontecesse?! Decorridos esses anos da vida que nos apressam, desviaram a nossa atenção para o clima, salvar o planeta, estamos todos a perecer, a vida vai-se extinguir, e fizemos cartazes, empunhamos bandeiras, enchemos praças e avenidas e fomos esquecendo a paz e a guerra, a morte, a destruição, os genocídios infindáveis e esse tremendo cortejo de cadáveres esquecidos, apodrecendo na poeira do tempo. Até que um dia, as aves de rapina se aproximaram do nosso mundo civilizado e entraram na casa do nosso vizinho. Tivemos um ligeiro sobressalto, mas sem chegar a oscilar, pois não só não o conhecíamos como a casa estava um pouco afastada. Cerramos os olhos para não termos de conhecer a pilha de gente sem nome que se ia acumulando no jardim da casa ao lado da nossa. Acordamos agora há algumas semanas atrás quando os tambores voltaram a rebombar sem descanso as horas todas do dia, preparando o cenário para a próxima encenação, uma nova tragédia grega com os seus cinco actos e o seu coro, mas o bom senso, a harmonia e a moderação, vivendo escondidas na cave do palco onde reina a exaltação incendiária, fogosa, envenenada, serpenteadora. Estamos no reino das trevas e voltam a contar-nos a história da Geni e do Zepelim e como sempre fizemos, acreditamos. Nesta noite de incêndio com as chamas fulgurantes acendendo luzes como galáxias, regresso ao teu olhar de há tanto tempo, à pureza das lágrimas correndo lentas e sofridas pela tua face hirta e fixa. O verde-esmeralda dos teus olhos a perder-se na distância longínqua da humanidade, “longe, lá longe”, onde tentas encontrar a razão que explique tanta barbárie, tanta miséria humana, destes “mordomos do universo todo”. Não longe de onde nos encontramos, na terra que foi berço dos Deuses, em cada dia soma-se a história de um holocausto olvidado vai fazendo o seu caminho, mas continua tudo tão distante, tão remoto que nem um bom ouvido desperto parece conseguir escutar. Agora parece que deixaram a casa do vizinho e dirigem-se para a nossa, devem chegar em breve, mas ainda desta vez vamos ficar incrédulos, surpresos, mesmo sabendo que já será tarde demais. Entretanto, como nos disse Gedeão, “na berma da estrada, em quinhentos metros, há quinhentos mortos com os olhos abertos”. Talvez ainda não sejamos nós, quem sabe!?
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