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01/12/21

O REAL É VIRTUAL?

 Mário Martins




Existe alguma prova de que o mundo é real? Não há qualquer prova de que o seja.”

Hervé Le Tellier
 

Na introdução à entrevista ao autor (Revista Expresso 2021-09-17), Luciana Leiderfarb escreve que “Este francês de 64 anos, jornalista, matemático, linguista e escritor, atira-nos para o abismo de uma ideia radical: a de que o mundo seja uma realidade virtual.”

A ideia, embora extraordinária, não é nova (volta e meia alguém a lança no éter). O que é novo, no sentido de recente, é o conceito de realidade virtual, criado há poucas dezenas de anos e suportado pela invenção e evolução dos computadores, o qual traduz “o uso de alta tecnologia para convencer o usuário de que ele se encontra em outra realidade, provocando o seu envolvimento por completo.” (Pimentel-1995/Wikipédia). E toda a definição de virtual tem como referencial o real; veja-se, por exemplo, o significado de realidade virtual no Dicionário Priberam:Ambiente de simulação ou recriação do real que resulta da utilização de tecnologia informática interactiva.”. Real que, para o mesmo dicionário, é o “que existe de facto, que tem existência física, palpável, que é relativo a factos ou acontecimentos, que contém a verdade, ou que não é imaginário, artificial, falso, ilusório, (em suma) aquilo que é real é a realidade.”

A conjectura de Le Tellier apela directamente para a epistemologia, quer dizer, para o  ramo da filosofia que se ocupa dos problemas que se relacionam com o conhecimento humano, reflectindo sobre a sua natureza e validade.” (cf. o citado Dicionário). Visto desse exigente patamar, o conceito de real ou de realidade afigura-se bem mais complexo do que o simples significado do dicionário. Tanto é real uma coisa, como é real o modo humano, individualmente diferenciado, de percepcionar a realidade, como são reais os sonhos de cada pessoa. O modo de apreensão do que definimos como real está, para usar uma expressão em voga, confinado aos modos sensorial, cognitivo, intuitivo e imaginativo do ser humano, em cada época. Este é o “nó górdio” do conhecimento: o Homem não pode sair de si próprio para conhecer a essência da Natureza de que é parte recente, impossibilidade que um génio como Pessoa, de forma literariamente admirável, reconhece: “Todo o mistério do mundo desce até ante meus olhos se esculpir em banalidade e rua. Ah, como as coisas quotidianas roçam mistérios por nós! (Livro do Desassossego)”. É esse mistério impenetrável, a um tempo angustiante e desafiador, que tanto acicata no Homem a invenção de deuses como permite, sem risco de categórico desmentido, a negação do real.

Na hipótese de o mundo real ser, afinal, virtual - conceito na essência equivalente à alegoria platónica da caverna -, nada do que existe ou acontece, existe ou acontece de facto, seguindo-se daqui, por exemplo, que não teria ocorrido a recente erupção vulcânica nas Canárias mas unicamente a simulação de uma erupção. A alteração é apenas de ordem semântica, porque, quanto ao resto, o autor deixa-nos descansados ao considerar que “realmente” nada muda. Le Tellier vai, porém, mais longe ao defender que não há prova de que o mundo seja real, colocando ousadamente a inexistência de prova de que o mundo é virtual a par da alegada inexistência de prova de que o mundo é real. O facto de o que chamamos mundo real se nos impõr através da nossa percepção sensorial e cognitiva, e de a hipótese do mundo virtual se basear apenas, como o próprio reconhece, numa “experiência do pensamento”, não parece incomodar o escritor laureado com o Prémio Goncourt 2020. Sobra ainda a questão de saber se nessa “experiência do pensamento” nós também somos virtuais ou se, pelo contrário, encarnamos a única “coisa” real do mundo…

Na esteira do crente que diz: “eu acredito em Deus, agora provem que Ele não existe”, há neste ambiente de suposições radicais, mas estranhas à metodologia científica,  uma espécie de inversão do ónus da prova. Em vez de competir aos autores de afirmações ou hipóteses extraordinárias a apresentação dos respectivos elementos de prova, caberia aos outros demonstrar a sua falsidade. Ao contrário, as teorias revolucionárias do heliocentrismo, da gravidade e da mecânica quântica, basearam-se sempre no real ou nas incongruências da sua interpretação, foram devidamente fundamentadas, expostas à crítica dos pares, e comprovadas pela experiência. É, por isso, sempre oportuno recordar a célebre frase de Carl Sagan: “Alegações extraordinárias requerem provas extraordinárias.”.


NB: Artigo baseado na entrevista do autor e não no livro premiado, que não li.
  


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