António Mesquita
A peça de William Shakespeare, "King Lear", que o teatro S. João levou à cena, começa por um conto de fadas, que faz lembrar "A Princesa e o Sal". Um rei desafia as três filhas a descrever por palavras o seu amor. A mais nova, não se sentindo capaz de exprimir esse sentimento, compara o seu amor à importância do sal para a comida. O rei, ofendido por tal comparação, expulsa-a do reino.
Goneril, Regan e Cordélia enfrentam semelhante desafio, mas enquanto as primeiras recorrem impudicamente à lisonja, a mais nova responde que não sabe o que dizer. Lear atribui o terço da herança que cabia a Cordélia às outras irmãs e força-a ao exílio.
Em primeiro lugar, surge a pergunta por que é que o velho entrega o poder às filhas e fica tão irado pelo silêncio da mais nova?
A idade pesa e Lear tem um problema de sucessão. Ao longo da peça vamos assistir a várias manifestações da sua senilidade. A "solução" por si encontrada não abona da sua racionalidade, e a zanga com Cordélia apenas revela a sua loucura, por ela ser a filha preferida e por maior ser o desapontamento.
Cordélia segue o rei de França que a aceita sem dote. As duas irmãs depressa revelam o seu carácter e ingratidão, despojando o pai das prerrogativas que se tinha reservado. Os seus cem cavaleiros, acusados de levarem a desordem ao reino, são reduzidos a cinquenta, depois a vinte e cinco e logo a nenhum. Lear renega a sua prole e embrenha-se na paisagem tempestuosa acompanhado de alguns fiéis que se disfarçaram de loucos ou mudaram de identidade para não serem reconhecidos pelo autor do seu exílio.
Regan e Goneril, apesar de filhas ingratas, dum ponto de vista político, estão fundadas na razão: o seu poder, dividido já entre elas, não pode ser ainda desafiado pelo séquito do pai que para elas abdicou.
A situação tem tudo para acabar mal e as consequências dos erros de Lear caem, de facto, sobre a sua cabeça.
Para complicar, o filho bastardo do duque de Gloucester, Edmund, um modelo da sucessão disruptiva, manobra para roubar a herança do filho legítimo, Edgar e seduzir as rainhas irmãs virando-as uma contra a outra. Introduzo aqui uma citação do artigo de Miguel Ramalhete Gomes que foi distribuído no espectáculo do teatro S.João:
"Tanto Regan como Goneril se apresentam como filhas impacientes, mas é Edmund quem surge como um dos filhos terríveis dos Tempos modernos, para usar uma sua caracterização por Peter Sloterdijk (2018: 422). Em "Die schrecklichen Kinder der Neuzeit" (2014), vertido em francês como "Après nous le déluge" (2018). Sloterdijk propõe um entendimento da modernidade como regida por uma lógica de descontinuidade genealógica, em que "enfants terribles" sucessivos rejeitam violentamente pais monstruosos, quebrando cadeias de tradição e opondo a desobediência às condições que acompanham as heranças do passado."
Quando o reino não é mais do que cinzas e caos (recordo aqui as cenas tremendas do "Ran" de Kurosawa, inspirado na peça do vate inglês) é Cordélia que vem trazer o último conforto a Lear, mas para morrer, assassinada por um dos fâmulos de Edmund.
Shakespeare, como se vê, evita-nos o "happy end" dum Lear reconciliado com a "princesa do sal" e a ordem restabelecida no reino. O pior tinha que acontecer, sem esperança. No fundo, o que aqui está em causa é o império da Necessidade que a tragédia grega definiu como sendo a sorte do homem. É por isso que Simone Weil, a filósofa, escolheu esta peça entre as raríssimas obras que podem representar o grito mudo da infelicidade. Os infelizes "não podem contar para isso com os homens de talento, as personalidades, as celebridades, nem mesmo com os génios no sentido em que é comum empregar a palavra génio, cujo uso se confunde com a da palavra talento. Só podem contar com os génios de primeiríssima ordem, o poeta da "Ilíada", Ésquilo, Sófocles, Shakespeare tal como era quando escreveu "Lear", Racine tal como era quando escreveu 'Fedra". Isso não faz um grande número."(*)
(*) SImone Weil, "Écrits de Londres"
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