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01/10/21

NOTAS POLÍTICAS PARA A "RENTRÉE"

 Mário Martins



Os regimes ditatoriais ou autoritários vêm levando a cabo, nos últimos tempos, uma ofensiva ideológica, à boleia da pandemia e das graves comoções políticas estado-unidenses, propagandeando uma suposta maior eficácia do que a da “serôdia” democracia representativa. É admissível que regimes de poder concentrado sejam mais eficazes em situações de emergência, embora, em sentido contrário, meio mundo desconfie da prontidão da resposta chinesa ao aparecimento do novo vírus e da abertura do regime à investigação da sua origem, e, por outro lado, se verifique nos regimes democráticos a tomada de medidas de emergência de duvidosa cobertura legal ou constitucional. Em todo o caso, uma alegada superior eficácia em situações extraordinárias, embora teoricamente possível, visa justificar uma permanente concentração do poder, não sufragada pelo voto popular em condições de liberdade.

Com efeito, enquanto a democracia representativa é legitimada pelo voto popular em liberdade, a ditadura precisa de recorrer a grandes ideias, como a de nação ou a do fim da exploração do homem pelo homem, para “legitimar” o poder de um pequeno grupo sobre a população. Aceitar, em situação normal, o poder, por tempo indeterminado, de uma escassa minoria de pessoas sobre todas as demais, é, na prática, equivalente à aceitação, no passado, da “origem divina” do poder real absoluto, ou, no presente, do governo pela lei islâmica.

Entre a democracia e a ditadura, tipificadas por países como o Reino Unido e a China, existe uma espécie de regime equívoco, a que se vem chamando autoritário, como é o caso da Rússia, em que há partidos políticos e eleições, mas em que a liberdade e a independência judicial são, no mínimo, “musculadas” (volta e meia os opositores de Putin são presos), e as emendas constitucionais visam a conservação do poder. Donde, o primeiro requisito para um regime ser considerado democrático é o da liberdade e não o da realização periódica de eleições. Sem liberdade estas tornam-se uma farsa, como era, aliás, o caso de Portugal no tempo do Estado Novo.

Portugal é uma democracia representativa. Há liberdade, partidos políticos, eleições periódicas, limitação de mandatos, independência judicial. Tudo isso salvaguardando, é claro, a distância, maior ou menor, entre os princípios formais e as realidades factuais, cá como em toda a parte, ditaduras incluídas. No entanto, há já muitos anos que estão diagnosticados alguns males dessa representação. Um deles, e não certamente o menor, reside no desmesurado papel dos partidos políticos, muito evidente nas eleições legislativas. Formalmente, o povo elege os deputados, mas realmente, o que lhe é dado a escolher, no boletim de voto, são os partidos políticos, cujos chefes escolheram ou validaram as respectivas listas de deputados, e a quem estes, de facto, devem obediência. Os eleitores não têm qualquer possibilidade de vetar este ou aquele candidato a deputado ou, sequer, de alterar a ordem em que são apresentados. 

Outra deficiência é a falta de um adequado controlo democrático dos grupos económico-financeiros que, em Portugal, como se sabe, estão tradicionalmente muito encostados ao Estado. De facto, as eleições circunscrevem-se aos órgãos do Estado: Presidente da República, Assembleia da República e Autarquias Locais, não interferindo na constituição do Governo e dos Tribunais e, muito menos, na administração das empresas, que corporizam a liberdade económica, a qual, ideologicamente, faz parte, hoje, dos requisitos para o reconhecimento de uma democracia representativa. Quando, como no caso português, os órgãos do Estado, legitimados pelo povo, não exercem, por incúria, complacência, ou má-fé, o seu papel regulamentador e fiscalizador da área económico-financeira, ficam reunidas as condições para o surgimento dos “donos disto tudo”. Nas ditaduras, a realidade oscila entre uma economia estatizada e uma economia de mercado, passando pela particularidade chinesa de uma economia mista, sob a direcção, em todos os casos, dos respectivos partidos dirigentes.

Em Portugal e, certamente, em maior ou menor grau, lá fora, há um “eles”, os políticos e, em geral, os que mandam, e um “nós”, o povo. Subjacente a esta diferenciação, tão alimentada pelo ditador Salazar: "Se soubesses o que custa mandar, preferias obedecer toda a vida", está a ideia de que “eles” estão no poder para dele tirarem proveito, e que “nós”, somos um “poço de virtude”. Sem perder de vista a especial responsabilidade das chamadas elites na condução dos negócios do país, a realidade é que o nosso comportamento cívico deixa muito a desejar, seja no capítulo do respeito pelo outro, seja na defesa do bem público.

Não se devem, pois, esperar grandes progressos na superação destas “entorses” democráticas, para não falar dos abusivos regimes ditatoriais ou autoritários que só acabam por apodrecimento ou pelo cano da espingarda. Não há sinais de que os partidos queiram abrir mão do seu poder sobre os deputados. A costumada ligação informal ao Estado Português dos grupos económico-financeiros, deverá manter-se apesar dos sobressaltos judiciais do momento. A nível internacional, a grave crise financeira ocidental de 2008/2009, que tanto sangrou os erários públicos, não conduziu à abolição dos paraísos fiscais. E a atitude “de condómino” (que entrega a gestão do condomínio em que vive a uma administração profissional, para tratar da sua “vidinha”) da maioria da população face à política, dando-lhe margem para entoar “cantigas de escárnio e mal dizer”, está para durar.

 


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