Mário Martins
Os regimes ditatoriais ou
autoritários vêm levando a cabo, nos últimos tempos, uma ofensiva ideológica, à
boleia da pandemia e das graves comoções políticas estado-unidenses, propagandeando
uma suposta maior eficácia do que a da “serôdia” democracia representativa. É
admissível que regimes de poder concentrado sejam mais eficazes em situações de
emergência, embora, em sentido contrário, meio mundo desconfie da prontidão da
resposta chinesa ao aparecimento do novo vírus e da abertura do regime à
investigação da sua origem, e, por outro lado, se verifique nos regimes
democráticos a tomada de medidas de emergência de duvidosa cobertura legal ou
constitucional. Em todo o caso, uma alegada superior eficácia em situações extraordinárias,
embora teoricamente possível, visa justificar uma permanente concentração do
poder, não sufragada pelo voto popular em condições de liberdade.
Com efeito, enquanto a democracia
representativa é legitimada pelo voto popular em liberdade, a ditadura precisa
de recorrer a grandes ideias, como a de nação ou a do fim da exploração do
homem pelo homem, para “legitimar” o poder de um pequeno grupo sobre a
população. Aceitar, em situação normal, o poder, por tempo indeterminado, de
uma escassa minoria de pessoas sobre todas as demais, é, na prática,
equivalente à aceitação, no passado, da “origem divina” do poder real absoluto,
ou, no presente, do governo pela lei islâmica.
Entre a democracia e a ditadura, tipificadas
por países como o Reino Unido e a China, existe uma espécie de regime equívoco,
a que se vem chamando autoritário, como é o caso da Rússia, em que há partidos
políticos e eleições, mas em que a liberdade e a independência judicial são, no
mínimo, “musculadas” (volta e meia os opositores de Putin são presos), e
as emendas constitucionais visam a conservação do poder. Donde, o primeiro
requisito para um regime ser considerado democrático é o da liberdade e não o
da realização periódica de eleições. Sem liberdade estas tornam-se uma farsa,
como era, aliás, o caso de Portugal no tempo do Estado Novo.
Portugal é uma democracia
representativa. Há liberdade, partidos políticos, eleições periódicas,
limitação de mandatos, independência judicial. Tudo isso salvaguardando, é
claro, a distância, maior ou menor, entre os princípios formais e as realidades
factuais, cá como em toda a parte, ditaduras incluídas. No entanto, há já
muitos anos que estão diagnosticados alguns males dessa representação. Um deles,
e não certamente o menor, reside no desmesurado papel dos partidos políticos,
muito evidente nas eleições legislativas. Formalmente, o povo elege os
deputados, mas realmente, o que lhe é dado a escolher, no boletim de voto, são
os partidos políticos, cujos chefes escolheram ou validaram as respectivas
listas de deputados, e a quem estes, de facto, devem obediência. Os eleitores
não têm qualquer possibilidade de vetar este ou aquele candidato a deputado ou,
sequer, de alterar a ordem em que são apresentados.
Outra deficiência é a falta de um
adequado controlo democrático dos grupos económico-financeiros que, em
Portugal, como se sabe, estão tradicionalmente muito encostados ao Estado. De
facto, as eleições circunscrevem-se aos órgãos do Estado: Presidente da
República, Assembleia da República e Autarquias Locais, não interferindo na
constituição do Governo e dos Tribunais e, muito menos, na administração das
empresas, que corporizam a liberdade económica, a qual, ideologicamente, faz
parte, hoje, dos requisitos para o reconhecimento de uma democracia
representativa. Quando, como no caso português, os órgãos do Estado,
legitimados pelo povo, não exercem, por incúria, complacência, ou má-fé, o seu
papel regulamentador e fiscalizador da área económico-financeira, ficam
reunidas as condições para o surgimento dos “donos disto tudo”. Nas ditaduras, a
realidade oscila entre uma economia estatizada e uma economia de mercado, passando
pela particularidade chinesa de uma economia mista, sob a direcção, em todos os
casos, dos respectivos partidos dirigentes.
Em Portugal e, certamente, em
maior ou menor grau, lá fora, há um “eles”, os políticos e, em geral, os que
mandam, e um “nós”, o povo. Subjacente a esta diferenciação, tão alimentada
pelo ditador Salazar: "Se soubesses o que custa mandar, preferias
obedecer toda a vida", está a ideia de que “eles” estão no poder para dele
tirarem proveito, e que “nós”, somos um “poço de virtude”. Sem perder de vista
a especial responsabilidade das chamadas elites na condução dos negócios do
país, a realidade é que o nosso comportamento cívico deixa muito a desejar,
seja no capítulo do respeito pelo outro, seja na defesa do bem público.
Não se devem, pois, esperar grandes
progressos na superação destas “entorses” democráticas, para não falar dos
abusivos regimes ditatoriais ou autoritários que só acabam por apodrecimento ou
pelo cano da espingarda. Não há sinais de que os partidos queiram abrir mão do
seu poder sobre os deputados. A costumada ligação informal ao Estado Português
dos grupos económico-financeiros, deverá manter-se apesar dos sobressaltos
judiciais do momento. A nível internacional, a grave crise financeira ocidental
de 2008/2009, que tanto sangrou os erários públicos, não conduziu à abolição dos
paraísos fiscais. E a atitude “de condómino” (que entrega a gestão do
condomínio em que vive a uma administração profissional, para tratar da sua
“vidinha”) da maioria da população face à política, dando-lhe margem para
entoar “cantigas de escárnio e mal dizer”, está para durar.
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