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01/10/21

GERTRUD

António Mesquita

("Gertrud" é um filme dinamarquês de 1964, realizado por Carl Dreyer)


Gertrud é a história duma fatalista. A figura do pai é invocada para explicar a espécie de transcendência do amor, tal como ela o concebia. A cena contém um psicólogo e uma mulher que se confessa. Ela diz: "o meu pai acreditava na predestinação". Ora o poeta com quem casou é o homem que lhe abre os horizontes do amor. Que a induz para fora do complexo familiar. Mas o seu ascendente é do tipo paternal. O sujeito amoroso assim “educado” é uma criação 'ab nihilo'. O amor do pai é transcendente na medida em que já está tomado e se aceita sem exame, como a dádiva do adulto.

O período da felicidade é tipicamente infantil, e é interrompido brutalmente pelos signos da traição, do amor não exclusivo do outro. Gabriel Lindmann não tem o direito de pensar como o pai. Aqui acaba o paralelismo das situações. Uma frase, acompanhada do desenho do seu rosto – provando a sinceridade da afirmação, porque é um pensamento atento e concentrado sobre o que a amante tem de mais emblemático – surge como um golpe do destino: “a mulher e o trabalho são incompatíveis desde o início”. Gertrud toma consciência dum divórcio “escrito” entre o pensamento e o coração. É como se lhe fosse dada ordem de se retirar da cena (do espelho oferecido por Gabriel). Esse impasse corresponde ao casamento paterno e aos direitos da mãe.

A heroína deve então embrenhar-se nas trevas e na força dos instintos procurar uma razão de vida. Isso leva-a a um matrimónio burguês sem remissão. Passado o desejo, só ficam os hábitos e o objecto doméstico. A promoção do marido a ministro é como a consagração da sua decadência. É o selo da sua prisão. Gertrud escolhe esse momento para romper. Ama um jovem indigno que se gaba da sua última conquista à mesa duma prostituta, e diante do nostálgico Gabriel Lindmann. Foi nessa noite que o último ideal do poeta foi assassinado. Ele esperava encontrar na vida da ex-amante um “vazio” a preencher pelo amor arrependido.

Nada demove a mulher inflexível que matou dentro de si o amor. No entanto, depois da desilusão recente, a cena com Gabriel é a revelação do verdadeiro amor. A maturidade regressa sobre os passos da loucura. Lindmann é duma sinceridade comovente, mas está na posição do suplicante. Gertrud é a predestinadora que vive dum amor intangível, porque irremediavelmente passado. É essa a mensagem do seu poema de 3 estrofes. Sou velha? Mas amei. Gabriel também se sente velho, depois que a juventude impudente calcou aos pés o ídolo da sua vida. Nesse sentido, o poeta perdeu tudo. Também ele se condenou a um regresso impossível. Gertrud, porém, guardou a alma longe da corrupção. O destino é melhor que a falta de fé. E a porta que na última imagem se fecha como um túmulo é incapaz de calar esse grito: "mas amei!".

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