Marques da Silva
Ontem
trouxe-te nacos do rio e das ruas, de paisagens que se viam ou adivinhavam.
Hoje trago-te o rio todo, que é como quem diz, todas as outras imagens que a
objectiva foi caçando ao longo da viagem. Nestes quatro dias, atraído pela
luminosidade, mesmo que ténue, do sol, desci até essas águas que correm para o
mar apertadas entre as margens. Caminhei por velhas ruas, pisei calçadas onde
pedras centenárias sempre viram esse rio passar, ou adivinharam-lhe o percurso,
dele terão ouvido falar noutros casos. Essas pedras, que a tanta vida já
assistiram, quantos dramas viveram, de quantas vivências souberam, quantos
amores esconderam, entre uma esquina e um recanto, entre a folhagem de um
arbusto ou a majestade de uma árvore. Em certos dias, os homens esfregam-lhes a
face, dão-lhe polimento para melhor parecerem, deixam-nas lavadas, mas
continuam a ver o quotidiano passar e a anotar na sua memória quantos sonhos
desfeitos, quantos desejos alcançados. A cidade já não vive tanto por ali, como
em tempos passados, vai mais de visita, mais em sossego, em deleite
contemplativo, escutando e tentando adivinhar os segredos do tempo. Assim fui
também, interrogando uma pedra, dialogando com paredes antigas, espreitando o
rio por entre as nesgas das casas que se erguem colina acima. Era o prazer de
uma solidão acompanhada, no pensamento e na memória, dos presentes, dos que se
viam, dos que sabemos próximos, dos amigos, dos que amamos, e na imaginação do
desejo, dialogando sobre mundos que se constroem e nos ajudam a empurrar a
dificuldade do presente. Há um momento que abraçamos o tempo, a paisagem, o
rio, os sonhos e deixamo-nos arrastar pelo encanto do que não temos mas a
memória alimenta. Subia em esforço, mas o que os olhos traziam compensava a fadiga.
Hoje há um vento que abana as árvores como por vezes nos abana a vontade e nos
enregela a alma. Hoje, a paisagem terá a tristeza do Inverno, não que tenha de
ser melancólica, mas será coberta de tons de cinza, faltará a cor, as cores, os
tons que dão alegria infinita às coisas e às pessoas. Amanhã, voo, irei pelos
céus na satisfação de desejos platónicos. Cobrirei a memória com um manto de
rainha e deixarei que o pensamento se solte à desfilada pelos céus. Por
instantes serei eu próprio, sem destino, sem rumo, apenas voando, planando
sobre tudo e sobre todos. Pássaro de asas largas, alimentarei os sonhos que
acumulo na arca que transporto no sótão da vida. Há momentos em que o mundo é
meu, não no sentido da posse, mas de estar nele, fazer parte dele, alcançá-lo
com a plenitude de tudo o que oferece e cada um de nós saberá merecer. Depois,
esta ave onde vou perde fôlego, baixa em voo rasante e deixa-me de novo onde
nunca deixei de estar. Quando o sol voltar hei-de regressar ao rio, às calçadas
do tempo.
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