António Mesquita
La libertad contra los monopolios | EL MONTONERO
Há tempos, cruzei-me na rua com um antigo vogal da Assembleia do Sindicato. Tanto bastou para evocar os idos anos 70. Com humilhação. Porque enquanto eu me lançava em afirmações arrojadas sobre os números do balanço das companhias, ele torcia-se na cadeira e ameaçava levantar-se se eu não me contivesse. Ele sentia tanto mais vivamente os meus dardos desajeitados quanto trabalhava numa dessas empresas ligada a um dos maiores grupos monopolistas.
Nada me autorizava a fazer uma análise tão sumária diante duma centena de pessoas. Contudo, a direcção sindical de que eu fazia parte como membro substituto havia-me confiado grandes responsabilidades. Integrado numa comissão de economistas e gente dos sindicatos, tomara parte nalgumas reuniões em Lisboa sobre o estado do sector. Eram as ideias que eu trazia na pasta que atirava a uma sala que só esperava notícias da negociação do contrato. A todo o momento o presidente devia chegar do aeroporto. Tratava-se, por isso, de entreter pessoas com a cabeça noutra coisa. Alguns julgariam que apenas debitava verdades consabidas deles próprios e das pessoas que consideravam honestas. E havia o cortiço despolitizado da classe, sujeito a ventos e marés. Muitos viviam ainda com o pensamento de outrora que os partidos haveriam de mandar para o ferro-velho. Acreditava-se em algumas pessoas a que se chamava então os prestigiados.
A dessintonia que havia na sala tornaria qualquer esforço de persuasão inglório. Todos percebiam que as convicções eram apenas um meio de me tirar de apuros e para passar o tempo. Pior serviço às ideias não podia ter sido feito e deixou-me imensamente frustrado. A crítica dos monopólios empregue como uma "bucha" e a prática "revelada" pelo sentimento do dever rebaixada ao nível dum expediente.
A censura iludia-nos ainda a todos e a ela própria com a presumida força da palavra livre. Como se o sentido da oposição não estivesse dependente dessa anacrónica proibição de existir que o fascismo lhe continuava a impor. Foi a democracia que esvaziou as oposições e as levou a esse confronto implacável com a realidade duma política regida por outras leis. Como os maus psicanalistas, julgávamos que o diagnóstico bastava para converter as multidões. Era não contar com a história vivida de cada “nevrótico” político. O que se convencionou chamar de fascismo não estava na relação da doença para com o doente. O regime foi incorporado nos hábitos da nação como um processo total. Não foram só as ideias – e as ilusões – que ficaram impregnadas. Mas toda a linguagem, desde os sentimentos, às acções e aos gestos simbólicos.
Com a liberdade, e passada a euforia ingénua, a verdade deixou de poder ser dita por toda a gente, ou melhor, deixou de ser universal. A vontade de esclarecer tornou-se partido, e, para a maioria, fonte de extrema complicação. O efeito paradoxal desta situação foi o de absolver o reino da mentira e erigi-lo, pouco a pouco, em terra firme para os náufragos duma revolução que se tornou palavrosa.
A má experiência não me impede de julgar, hoje, a qualidade da "bucha". Era evidentemente dogmática a doutrina duma correspondência unívoca entre o estado-maior dos monopólios e o do regime (como se aqueles não pudessem vingar noutro sistema político). Da nomeação monopolista, a que chegava pelo exame da carteira de títulos, parecia resultar a necessidade de libertar a riqueza concentrada no sector e pô-la ao serviço do que pensava ser o bem público. Mas não só as pessoas estavam focadas noutra coisa, como eu, sem dotes oratórios, me via induzido a fazer improvisações temerárias, apesar de toda "a superioridade moral" que outros no meu lugar se arrogassem. Automaticamente, adoptei uma voz monótona, como se estivesse a falar de coisas incontestáveis e indiferentes. Aventurava-me num terreno de especialistas, vencia uma timidez atávica, só porque não tinha outra saída.
Num texto de homenagem ao Fernando Barbosa de Olveira, anos depois da sua morte, escrevi algo um pouco diferente.
"A entrada do Fernando de
Oliveira, com a sua pasta carregada de papéis, operou no meu perfunctório
discurso o efeito da quebra de corrente num gira-discos. Foi com um grande
alívio que lhe passei o microfone, e a
sessão pôde, a seguir, atingir naturalmente o seu clímax."
Essa assembleia espelha um clima de unidade "inorgânica", antes da formação dos partidos e da criação das tendências, ainda sem o ódio que se havia de ver um pouco mais tarde.
Talvez tenha contribuído de algum modo, para o "alívio" e a apoteose colectiva. Hoje porém, a humilhação vem de ter sido tão pouco determinado por mim mesmo e de ter forçado a natureza, sem recursos próprios. A paixão não é agradável de se ver.
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