01/09/21
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
Ontem
trouxe-te nacos do rio e das ruas, de paisagens que se viam ou adivinhavam.
Hoje trago-te o rio todo, que é como quem diz, todas as outras imagens que a
objectiva foi caçando ao longo da viagem. Nestes quatro dias, atraído pela
luminosidade, mesmo que ténue, do sol, desci até essas águas que correm para o
mar apertadas entre as margens. Caminhei por velhas ruas, pisei calçadas onde
pedras centenárias sempre viram esse rio passar, ou adivinharam-lhe o percurso,
dele terão ouvido falar noutros casos. Essas pedras, que a tanta vida já
assistiram, quantos dramas viveram, de quantas vivências souberam, quantos
amores esconderam, entre uma esquina e um recanto, entre a folhagem de um
arbusto ou a majestade de uma árvore. Em certos dias, os homens esfregam-lhes a
face, dão-lhe polimento para melhor parecerem, deixam-nas lavadas, mas
continuam a ver o quotidiano passar e a anotar na sua memória quantos sonhos
desfeitos, quantos desejos alcançados. A cidade já não vive tanto por ali, como
em tempos passados, vai mais de visita, mais em sossego, em deleite
contemplativo, escutando e tentando adivinhar os segredos do tempo. Assim fui
também, interrogando uma pedra, dialogando com paredes antigas, espreitando o
rio por entre as nesgas das casas que se erguem colina acima. Era o prazer de
uma solidão acompanhada, no pensamento e na memória, dos presentes, dos que se
viam, dos que sabemos próximos, dos amigos, dos que amamos, e na imaginação do
desejo, dialogando sobre mundos que se constroem e nos ajudam a empurrar a
dificuldade do presente. Há um momento que abraçamos o tempo, a paisagem, o
rio, os sonhos e deixamo-nos arrastar pelo encanto do que não temos mas a
memória alimenta. Subia em esforço, mas o que os olhos traziam compensava a fadiga.
Hoje há um vento que abana as árvores como por vezes nos abana a vontade e nos
enregela a alma. Hoje, a paisagem terá a tristeza do Inverno, não que tenha de
ser melancólica, mas será coberta de tons de cinza, faltará a cor, as cores, os
tons que dão alegria infinita às coisas e às pessoas. Amanhã, voo, irei pelos
céus na satisfação de desejos platónicos. Cobrirei a memória com um manto de
rainha e deixarei que o pensamento se solte à desfilada pelos céus. Por
instantes serei eu próprio, sem destino, sem rumo, apenas voando, planando
sobre tudo e sobre todos. Pássaro de asas largas, alimentarei os sonhos que
acumulo na arca que transporto no sótão da vida. Há momentos em que o mundo é
meu, não no sentido da posse, mas de estar nele, fazer parte dele, alcançá-lo
com a plenitude de tudo o que oferece e cada um de nós saberá merecer. Depois,
esta ave onde vou perde fôlego, baixa em voo rasante e deixa-me de novo onde
nunca deixei de estar. Quando o sol voltar hei-de regressar ao rio, às calçadas
do tempo.
MAHLER NO DIVÃ DE FREUD
Mário Martins
https://www.myguideberlin.com/events/geboren-alma-schindler
O célebre maestro e genial compositor, o checo-austríaco ou, como ele dizia, o três vezes apátrida Gustav Mahler - "Sou três vezes apátrida! Como natural da Boêmia, na Áustria; como austríaco, na Alemanha; como judeu, no mundo inteiro. Em toda a parte um intruso, em nenhum lugar desejado!” – não resistiu à tentação, depois de muito hesitar, desesperado com a sua vida (tinha-lhe morrido uma filha e a mulher, com depressão, tornara-se amante do arquitecto Walter Gropius, fundador da famosa escola de arte vanguardista alemã, a Bauhaus), de se deitar no divã do pai da psicanálise, o igualmente judeu e austríaco-checo, Sigmund Freud, sem naturalmente saber que morreria no ano seguinte, aos 50 anos.
Freud, que diagnosticara em Mahler um quadro de neurose
obsessiva, não pôde deixar de ver no acto de, aos 41 anos, desposar Alma
Shindler, vinte anos mais nova, uma substituição da mãe de Mahler,
que era enfermiça e aflita, características que ele desejaria reconhecer na
mulher, enquanto Alma buscara em Mahler
o seu próprio pai, e foi justamente a diferença de idade - que tanto preocupava
Mahler - que a atraiu, como ela própria viria a reconhecer: “Freud
tinha razão. Quando Mahler me conheceu, desejava que eu fosse ‘marcada
pelo sofrimento’, foram essas as suas exactas palavras (...). Eu, também,
procurei realmente um homem baixo, atarracado, mas dotado de sabedoria e de um
espírito superior, como conhecera e amara meu pai...”
Mahler foi muito marcado pela infância: “Os meus pais davam-se como o fogo e a água. Ele era um teimoso, ela a própria candura. Sem essa aliança, nem eu, nem a minha 3ª. Sinfonia existiríamos.” Sendo o segundo mais velho de catorze irmãos, teve de disputar a preferência maternal e de suportar a morte de dez deles.
No divã de Freud, Mahler imputará a uma ocorrência da infância o facto de as suas composições mais geniais serem entremeadas por música mais popular e vulgar, ao lembrar-se de uma grande zanga entre o pai e a mãe, que o levara a fugir de casa a correr e a ouvir fortuitamente na rua, uma melodia popular tocada por um realejo. “Desde esse momento, a nobre tragédia e a fácil diversão estariam inexoravelmente unidas na minha mente e qualquer um desses sentimentos atraía o outro”.
Parafraseando Pessoa, Mahler era um doente cardíaco das estrelas, uma vez que lhe fora diagnosticada, quatro anos antes de morrer, uma infecção do coração, o que ajuda a explicar o retrato que a mulher, Alma Mahler, fez dele após a sua morte:
“Não tinha sossego nunca, em
lugar algum. Por toda a parte, atormentava-o o medo de desperdiçar tempo de
trabalho. Perseguido, acossado por um caçador invisível - a morte -, foi assim
que o conheci durante os dez anos em que pude conviver com ele. Desde muito
cedo, Mahler vivia como se sentisse que estava predestinado a morrer
jovem e, por isso, não se dava ao luxo de viajar, de tirar férias; pelo
contrário, trabalhou muito até à sua morte.”
“O meu tempo há-de chegar”
confiava Mahler, ao ver reconhecidas apenas as suas qualidades
excepcionais de maestro, e não o que mais gostava de fazer, as suas composições
musicais.
E de facto a posteridade não o
atraiçoou. Obras-primas como as 1ª., 2ª., 3ª. e 5ª. sinfonias, entre outras,
são hoje admiradas e tocadas pelas orquestras de todo o mundo.
Fontes:
- http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982017000300714
- Wikipédia
ORQUESTRAÇÕES
Manuel Joaquim
I
Há largas semanas que temos
deparado com uma grande campanha publicitária a lentes para óculos, com
tratamento antivírus, com a imagem de Catarina Furtado e do virologista Pedro
Simas.
Esta campanha foi agora proibida
pela Autoridade de Regulação Publicitária, por ter informações “enganosas”.
Pedro Simas é “investigador
científico, virologista e professor universitário” é comentador em órgãos de
comunicação, designadamente em TVS, sobre a COVID 19, pelo que está quase todos
os dias nas nossas casas. Pode acrescentar-se que também é vendedor de lentes.
E agora também é candidato a vereador à CM de Lisboa.
O semanário Expresso de 27 de
Agosto, na página 4 do Primeiro Caderno, informa que Filipe Froes, investigador
e coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Pulido Valente,
consultor da Direcção Geral de Saúde, coordenador do Gabinete de crise da Ordem
dos Médicos e membro do Conselho Nacional de Saúde Pública, pneumologista,
recebeu de farmacêuticas, designadamente de Pfizer e Astra Zeneca, 385 mil
euros desde 2013.
Provavelmente haverá outros
comentadores de serviço que também recebem de farmacêuticas dinheiros, directa
e/ou indirectamente, para abrirem caminhos para a venda dos seus produtos.
A orquestra, com este tipo de músicos,
está afinada para as pessoas aceitarem as terceiras e as quartas doses das
vacinas, e para alargar o mercado de consumidores com o recrutamento de jovens
e de crianças para a vacinação. São músicos (cientistas?) muito independentes
dos grandes interesses comerciais.
Entretanto os trogloditas que
votaram contra e sempre combateram o Serviço Nacional de Saúde, posições hoje
escamoteadas, que pediram violentamente a demissão da Diretora Geral de Saúde,
Graça Freitas, por ter admitido, no início da pandemia, que a infecção pudesse afectar
mais de um milhão de portugueses, só falam no SNS em abstracto. Entretanto,
mais de um milhão de pessoas já foram infectadas. Não falam que mais de um
milhão de pessoas não têm médico de família, não falam na falta de médicos e de
enfermeiros, de pessoal paramédico, de auxiliares e de equipamentos. Os
hospitais privados e os centros de diagnóstico e de análises privados continuam
a facturar em grande à custa dos bens públicos.
II
Lágrimas de crocodilo são
vertidas diariamente na comunicação dita social sobre o Afeganistão, sobre a
perda de direitos das mulheres e sobre os refugiados. Os papagaios de serviço choram desesperadamente pela derrota dos USA e da NATO, que é a mesma coisa,
fazendo até analogias com a fuga de Saigão dos militares norte-americanos.
Não vejo notícias sobre a situação que existia no Afeganistão no tempo do governo que foi derrubado pelos terroristas criados e alimentados pela CIA, pela Arábia Saudita, Paquistão e Nato e com a intervenção directa dos USA a pretexto do 11 de Setembro de 2001.
Existia um governo progressista
que apostou fortemente na educação, a presença maioritária de raparigas na
universidade de Kabul, na laicidade, na reforma agrária e nos direitos
democráticos e modernização da sociedade. A intervenção militar soviética aconteceu
a pedido do governo legítimo para auxiliar na defesa e na integridade do país. Os
militares soviéticos saíram em 1988 por ordens de Gorbachev, homem que veio a
desmantelar a URSS. O governo legítimo do Afeganistão manteve-se em funções
durante mais três anos, até 1992. O governo caiu quando a URSS cortou
abastecimentos de petróleo e cereais. O exército soviético não foi derrotado
como os papagaios de serviço pretendem fazer crer. Foram as questões políticas
internas da URSS que levaram àquela decisão.
A situação geográfica do
Afeganistão é estratégica. A proximidade com a China, Rússia, Paquistão e India,
sempre aguçaram os dentes ao imperialismo com destaque para os USA e
Inglaterra, antiga potência ocupante. Para o cerco à Rússia e China e para o
controlo de toda a região o Afeganistão não podia escapar às suas garras. É bom
ter presente que os USA têm mais de 800 bases militares à volta do mundo e os
militaristas, homens que defendem a guerra para o domínio do mundo, não podiam
admitir um Afeganistão democrático e socialista.
Foram 20 anos de ocupação, de
exploração desenfreada de pessoas e de riquezas. A produção de ópio, controlada
pelo exército dos USA, aumentou largas dezenas de vezes. É o maior produtor
mundial de ópio. As terras raras, metais altamente valiosos, existem em abundância,
são obtidas a custo zero.
Os sucessivos governos formados
por lacaios que viviam e trabalhavam nos USA serviam perfeitamente. A União
Europeia nunca questionou nem nunca aplicou sanções por falta de
democraticidade nos processos eleitorais como faz a outros países.
Mas a correlação de forças
internacionais nestes últimos vinte anos tem-se alterado profundamente. E
vive-se uma nova situação.
A entrega do Afeganistão aos
Talibans foi decidida pelos USA há muitos meses. Foi Trump quem esteve nas
negociações e isso é público. O calendário, alterado várias vezes, foi estabelecido.
A formação de um exército afegão com mais de 300.000 militares, com
equipamentos modernos, fez parte do processo de ocupação dos USA e do processo
negocial. Tudo foi organizado para que com a saída dos USA e da NATO se
caminhasse rapidamente para uma guerra civil entre o exército e os Talibans. Só
que isso não aconteceu em virtude de o exército ter “desaparecido”. É bom
meditar em algumas intervenções recentes de Biden. É da História que estes
processos não são lineares. Os Talibans começaram a negociar com a Rússia, em
Moscovo, com a China, em Pequim, com o Irão, em Teerão, com a India e com o
Paquistão. Pretendem formar governo só depois das tropas estrangeiras
abandonarem o país e não aceitam prolongar o prazo de 31 de Agosto, previamente
acordado.
Entretanto a CIA tem transportado
elementos do ISIS da Síria para o Afeganistão, fugindo à sua certa eliminação e
colocá-los em novo teatro de terrorismo para provocar o caos como tem
acontecido nestes últimos dias.
Muitos colaboracionistas das
tropas ocupantes estão a ser retirados para outros países. Ninguém ouve falar
nos mercenários contratados. Muitas pessoas, mulheres e crianças, que pretendem
abandonar o país, não vão conseguir, estão a ser descartadas. Sabendo-se que
existe a poligamia, o nosso ministro da defesa, não permite que venham as
famílias completas, mais do que uma esposa, com todas as consequências que isso
acarreta. Os papagaios da comunicação não dizem que muitos destes refugiados
estão a ser levados para países fora da Europa e dos USA, para países da África
e da América do Sul.
A Unicef tem alertado que 10
milhões de crianças precisam de ajuda para sobreviver. 1 milhão está em
situação de fome. 20 anos de ocupação não foi suficiente para organizar o país,
criar condições de subsistência para a população carenciada? Ou os 20 anos foi
o tempo necessário para destruir todas as estruturas económicas e sociais que
existiam? O senhor Biden disse há poucos dias que o objetivo foi acabar com o
terrorismo. Verifica-se isso mesmo.
Os papagaios de serviço estão a
ficar tartamudos com todos estes acontecimentos. Como vão reagir quando as
tropas ocupantes do Iraque tiverem de sair até ao final deste ano? E quando
forem corridos da Síria a toque de caixa?
UM PERFUNCTÓRIO DISCURSO
António Mesquita