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01/07/21

A CAUDA DO DRAGÃO

António Mesquita



Adão e Eva de Albrecht Dürer



Em 1961, Hannah Arendt, como repórter do jornal New Yorker, assistiu, em Jerusalém, a um dos julgamentos do século.

No banco dos réus, dentro duma caixa de vidro, sentava-se um homenzinho cheio de tiques que durante o regime hitleriano teve a seu cargo a deportação dos judeus para os campos de extermínio. Fora capturado, uns meses antes, na Argentina, pelo Mossad, serviço secreto de Israel.

Para Hannah Arendt, intelectual judia a viver nos EUA desde 1941, o desafio era resistir ao clima de linchagem que pretendia tornar o réu no bode expiatório dos sofrimentos inauditos infligidos a todo um povo. Era preciso mostrar a máquina e não a peça que se pode substituir por outra do mesmo molde. Para isso, o mundo devia reconhecer uma evidência: Adolf Eichmann não era um extra-terrestre nem um habitante das regiões infernais. 

O artigo foi muito elaborado e demorou o seu tempo a ser escrito, para desespero dos editores e da governança israelita. Mas o conceito que veio a ser conhecido pela "banalidade do mal" foi uma espécie de duche escossês para todos os que pretendiam, além da sentença condenatória e da execução que se lhe seguiu, a confirmação duma responsabilidade quase demoníaca do acusado. Arendt resumiu essa reacção, escrevendo que "este caso foi construído com base naquilo que os judeus sofreram, e não no que Eichmann fez."

Por causa dessa posição de equanimidade filosófica, dessa recusa de tomar o partido emocional que parecia ser a verdade única e a justiça mais óbvia, Arendt foi ameaçada de morte e hostilizada pela Diáspora, pelos organizadores do julgamento e até pelo meio universitário, uma das raras excepções sendo a da sua indefectível amizade norte-americana, Mary McCarthy. 

O filme de 2012,  de Margareth von Trotta, filia a sua corajosa atitude no dever de pensar que lhe teria sido incutido pelo mestre de "Ser e Tempo"(1927), Martin Heidegger, o qual, lamentavelmente, chegou a filiar-se no partido  nazi, tendo-se arrependido depois, segundo o filme, num encontro com a sua antiga aluna e amante.

É estranho, de qualquer modo, que a "intelligentsia" do judaísmo e os políticos israelitas se tenham enganado sobre a personalidade de Hannah Arendt, como se a obra que ela deixava atrás de si não fosse um testemunho de que o caso Eichmann nunca poderia ser tratado como uma simples peça de jornalismo para consolidar os ódios ou exercer qualquer tipo de "vingança histórica".

O que apareceu aos olhos de Hannah Arendt como a verdade revelada foi a flagrante inadequação daquela figura patética diante dos seus juízes ao carácter monstruoso que a opinião pública da época, em que a guerra estava ainda presente em todos os espíritos, dele esperava como explicação metafísica.

Arendt não cedeu à facilidade demagógica e apresentou ao mundo o seu diagnóstico desconcertante. 

Para além do desfecho daquele processo e das conclusões que se puderam tirar, a ideia de "banalidade do mal" é de molde a inquietar-nos, enquanto a cultura, sobretudo ocidental, for o que é.

Porque se um homem medíocre, com os gostos e a ambição de qualquer zé-ninguém (embora corrompido pelo poder como qualquer mortal) pode assim ser usado por uma máquina social, disciplinar e burocrática, de índole assassina como foi o regime nazi, conservando a boa-consciência que Adolf Eichmann exibiu ao longo do processo, como saber se e quando estaremos  na melhor boa-fé, servindo "exemplarmente", isto é, como algo de banal e corriqueiro, "cumprindo ordens", como disse que fez este serventuário da ditadura, a colaborar num massacre invisível, numa trituração de todo o instante, só porque a engrenagem é demasiado indirecta ou demasiado abstracta para os funcionários do quotidiano que, por outro lado, nada têm de "engenheiros da alma",  e que se julgam no direito de viver as suas vidas?

Não somos apenas o "lobo do homem" em todos os cantos do mundo. Isso é cada vez mais evidente em relação ao ambiente, à natureza e às outras espécies. E começámos a sentir-nos "responsáveis", graças ao que pode ser um modismo cultural, até pelo que fizeram os nossos antepassados, como se vê pelas teorias de reescrita da História que levam ao "linchamento" de estátuas e de monumentos.

O caso é que tudo isso é "banal" e não estamos com certeza  à altura de compreender o que se passa dentro do pensamento teatral que é o nosso guião habitual, nem somos capazes de descarregar sobre os nossos ombros o fardo bíblico ou de qualquer outra teogonia.

Baudelaire dizia que "é um imenso gozo eleger domícilio no número".  Já não. E como uma segunda expulsão do paraíso, e pelo mesmo motivo: comemos da árvore do conhecimento.

Podia-se ter enforcado o burocrata sem mais histórias, como uma espécie de compensação devida às vítimas de Moloch, sem querer colocar a questão da responsabilidade individual. Aí as coisas complicam-se sobremaneira. Serventuários, por gostarem de obedecer  ou não poderem deixar de o fazer, cúmplices conscientes ou não, automatismos, hábitos, tradições (o anti-semitismo incluído), vem tudo atrás como a cauda do dragão.



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