Marques da Silva
Vanino – Há vários dias que estou
nesta pequena cidade nas margens do Pacífico. Deambulo pelas ruas e arredores.
Procuro o litoral mas não é fácil um acesso nas proximidades. É uma cidade
portuária, mas inserida dois quilómetros no interior de uma baía. Caminho bastante
até alcançar um lugar onde possa espraiar o olhar pela imensidão do Pacífico.
Fico até tarde, ainda iludido que vou apreciar o sol a partir, só que aqui
nasce no mar e desaparece nas minhas costas, no interior da Sibéria. Deleitei
os olhos uma tarde, em que excepcionalmente o céu se abriu em azul, com um
clarão vermelho. Nos dias restantes é um céu cinzento e um ar frio que povoam
os dias. A temperatura está muito aceitável se comparada com a da cidade
anterior. Não sobe muito mas também não baixa dos menos cinco graus. As cidades
siberianas têm muito de comum no edificado habitacional. Vanino não é excepção.
Bairros residenciais construídos pelo regime soviético, bastante idênticos.
Havia a necessidade de construir muito e rápido para que todos tivessem uma
habitação. Utilizaram edifícios pré-fabricados através dos quais obtinham o
resultado desejado e o conforto essencial face ao rigor deste clima. Quando o
regime caiu e as casas estatais foram vendidas numa espécie de mercado negro, o
problema da habitação ficou resolvido, quem tinha dinheiro comprava, os
restantes saíam. A consequência desse momento áureo do capitalismo são agora
nos arredores das cidades imensas casas de madeira, grande parte em ruínas ou
com manutenção deficiente, uma ou outra, bem conservada. Não são propriamente
bairros de lata, mas percebe-se que são zonas de pobreza, insuficiência de
rendimentos, de gente cujos direitos sociais ruíram com o Estado. Os grandes
blocos antigos começam a ser recuperados. Quando observamos com atenção fica a
ideia que a sociedade russa começa a sair do torpor em que a euforia do
capitalismo a mergulhou nos últimos trinta anos. Afinal a conquista da
liberdade arrastou consigo 50 milhões de pobres, numa sociedade que não
conhecia a miséria. O Inverno é sempre deprimente e aqui um pouco mais por ser
longo. A neve já não cai com tanta intensidade. Há sinais de degelo, o que faz
nascer a água e lama que misturadas apresentam um semblante ainda mais triste da
paisagem. As árvores estão ainda longe de ver o verde cobri-las, têm as folhas
queimadas e os ramos despidos. É uma melancolia nostálgica que sobrevoa a alma
quando tentamos imaginar a Primavera que aqui não existe. Anton Tchékhov disse
da Sacalina que não tinha estações do ano, apenas mau tempo. Esta grande ilha
surge do outro lado deste litoral e em dias límpidos quase se avista, o que me
faz recordar que, aquando da sua visita, há mais de cem anos, Tchékhov poderá
ter sentido algo semelhante ao que vivo neste momento, uma tarde em que
escreveu o seguinte, “De um lado,
tínhamos uma vista ampla sobre o Posto e arredores; do outro, víamos o mar
sereno que brilhava à luz do Sol. A falésia estava cheia de campas e de cruzes.
Lado a lado, erguem-se duas grandes cruzes: são as campas de Mitsul e do
inspector Selivánov, assassinado por um recluso. As pequenas cruzes das campas
dos deportados são todas iguais e todas anónimas. Mitsul ainda será recordado
por algum tempo, mas de todos esses homens que repousam sob aquelas pequenas
cruzes, desses homens que mataram, arrastaram correntes, que se evadiram,
ninguém terá necessidade de se lembrar deles.” O escritor russo permaneceu
em Sacalina durante o Verão de 1890, numa estadia de três meses entre o Norte e
o Sul da ilha. Sacalina começou a ser povoada na segunda metade do século XIX.
Povoada é um termo colonial, pois esquece as tribos autóctones que há muito a
habitavam. Os primeiros colonos e milhares de presos deportados que iniciaram
os assentamentos populacionais, viveram terríveis e indescritíveis provações. Tchékhov
faz-nos um relato muito vivo e impressionante e quando escreveu as palavras
citadas, estava no fim da sua estadia e na sua escrita nota-se o cansaço de
tudo o que viu e com que conviveu. Numa outra ocasião, talvez sentindo
nostalgia da Rússia europeia, aborda as saudades que toda aquela gente transportava
na alma, «A saudade manifesta-se em forma
de recordações permanentemente relembradas, tristes e comovedoras, acompanhadas
de queixumes e de lágrimas amargas, ou sob a forma de sonhos irrealizáveis que
muitas vezes nos surpreendem pelo seu carácter absurdo e delirante, ou ainda
sob a forma de um indubitável desarranjo mental.” A Sacalina hoje é um
lugar aprazível. Certamente isolado como qualquer ilha, mas cujo tamanho faz
esquecer esse isolamento. A Sibéria também conheceu profundas alterações e o
desenvolvimento ferroviário quebra um pouco o afastamento de todos aqueles que
vivem nas pequenas aldeias que foram surgindo ao longo da via-férrea. Como
disse, sente-se um renascer da antiga Rússia, com o Estado organizado e os
investimentos assentes em projectos. Quando saía de Tinda, bem no interior
siberiano, li a notícia de que, na parte superior do Baikal, com a mágoa de não
ter visto as suas águas azuis transparentes, estava a ser inaugurado nas suas profundezas
um observatório de neutrinos que irá ajudar a “entender como funciona o universo”. Mais uma vez no interior da
floresta siberiana a ciência progride. De Tinda para o litoral, o BAM a
Magistral linha ferroviária atravessa espaços menos povoados, apenas aldeias e
uma cidade com dimensão, a qual tive pena de não visitar, Komsomolsk-na-Amur. É
uma cidade que se estende pela margem direita do Amur com grandes espaços
verdes e abertos, muito bela no Verão. Talvez regresse um dia, de visita longa.
A noite aproxima-se com rapidez enquanto caminho em direcção à cidade. São
essas horas silenciosas e do crepúsculo que nos faz sentir o isolamento e a
solidão como um peso. Amanhã ainda vou vaguear por alguns espaços de Vanino,
para no dia seguinte embarcar, por fim, em direcção a Kamchatka, através do Mar
de Okhotsk até Petropavlovsk.
As citações de Anton Tchékhov, foram extraídas do seu livro, “A Ilha de Sacalina”, Relógio D’Água
Editores, Abril de 2011
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