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01/04/21

A POLÍTICA DA COVID

 Mário Martins

 

Yuval Noah Harari

(Veja.abril.com.br)

 

“A Humanidade não pode evitar o aparecimento de patógenos novos. Este é um processo evolucionário natural (…) Mas a Humanidade tem hoje o conhecimento e as ferramentas necessárias para impedir que um novo patógeno se espalhe e se torne uma pandemia. Se, apesar disso, a covid-19 continuar a espalhar-se em 2021 e a matar milhões ou uma pandemia ainda mais mortífera atingir a Humanidade em 2021, isso não será nem uma calamidade natural incontrolável nem um castigo de Deus. Será um fracasso humano e – mais precisamente – um fracasso político.”

Yuval Noah Harari

                                                            “Lições de um ano de Covid”  

Financial Times/Revista Expresso 12Mar2021

 

 

A leitura deste aliciante ensaio do reputado autor israelita, remete-nos para a velha metáfora da garrafa meio vazia meio cheia: “Muitas pessoas acreditam que o preço terrível do coronavírus demonstra a impotência da Humanidade face ao poder da Natureza (garrafa meio vazia). Na verdade, 2020 mostrou que a Humanidade está longe de ser impotente. As epidemias já não são forças incontroláveis da Natureza. A ciência transformou-as num desafio gerível (garrafa meio cheia). Então, porque é que houve tanta morte e sofrimento? Por causa de más decisões políticas”.

Harari aponta especialmente o dedo, com toda a razão, aos “Presidentes populistas dos Estados Unidos e do Brasil, que menosprezaram o perigo, recusaram ouvir os especialistas e em vez disso promoveram teorias da conspiração. Não produziram um plano federal de acção adequado e sabotaram tentativas de autoridades estaduais e municipais para deter a pandemia.” E acusa: “A negligência e irresponsabilidade dos governos de Trump e Bolsonaro resultaram em centenas de milhares de mortes evitáveis.”

A tese de Harari é que o problema deixou de ser científico para ser político, transmitindo, implicitamente, a ideia de que a complexidade apenas reside no campo da investigação científica e não também na esfera da decisão política.  Bastaria a esta seguir a mesma linha de racionalidade de que aquela não pode abdicar. Como diz Hararinestes tempos de pandemia, a cooperação global não é altruísmo. É essencial para garantir o interesse nacional (…) É que, se um novo vírus saltar de um morcego para um ser humano numa aldeia pobre de alguma selva remota, em poucos dias esse vírus pode estar a passear em Wall Street.”

No entanto, a expectativa de que, após o sucesso científico, tudo seria politicamente fácil, falhou. A política está longe de apenas se guiar por critérios de racionalidade. O mundo das coisas globalizou-se mas a mentalidade (sempre atrasada…) ainda é predominantemente local. Políticos como Trump e Bolsonaro continuam a ter grande adesão popular, apesar da sua evidente irresponsabilidade. É, aliás, oportuno sublinhar que os sucessivos avanços científico-tecnológicos alimentam constantemente a complexidade própria da política. Veja-se, como exemplo, este curto excerto de um interessante ensaio de Francisco Louçã sobre as redes sociais, publicado no mesmo número da revista do Expresso:   Um quinto dos tuítes políticos que circularam no período decisivo da campanha que elegeu Trump, em 2016, foi criado por robôs de origem desconhecida, e as notícias falsas “trumpistas” foram partilhadas 30 milhões de vezes.”

Afinal de contas, a denúncia e as acusações políticas de Harari põem, paradoxalmente, em causa a sua conclusão (apenas baseada nos avanços científicos alcançados num prazo espectacularmente curto) de que “a Humanidade está longe de ser impotente”.

Harari termina o seu artigo afirmando que, se as coisas voltarem a correr mal no futuro, “será um fracasso humano e – mais precisamente – um fracasso político.” Mas uma vez reconhecido que a complexidade está tão (ou mais) presente na política como na ciência, torna-se mais realista admitir a grande probabilidade de as coisas voltarem a ser mal geridas no futuro, evento que, sem dúvida, não deixará, todavia, de constituir um fracasso humano.

 


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