Mário Martins
Yuval Noah Harari
(Veja.abril.com.br)
“A Humanidade não pode evitar o
aparecimento de patógenos novos. Este é um processo evolucionário natural (…)
Mas a Humanidade tem hoje o conhecimento e as ferramentas necessárias para impedir que um novo
patógeno se espalhe e se torne uma pandemia. Se, apesar disso, a covid-19
continuar a espalhar-se em 2021 e a matar milhões ou uma pandemia ainda mais
mortífera atingir a Humanidade em 2021, isso não será nem uma calamidade
natural incontrolável nem um castigo de Deus. Será um
fracasso humano e – mais precisamente – um fracasso político.”
“Lições de um
ano de Covid”
Financial Times/Revista Expresso
12Mar2021
A leitura deste aliciante ensaio do reputado autor israelita, remete-nos para a velha metáfora da garrafa meio vazia meio cheia: “Muitas pessoas acreditam que o preço terrível do coronavírus demonstra a impotência da Humanidade face ao poder da Natureza (garrafa meio vazia). Na verdade, 2020 mostrou que a Humanidade está longe de ser impotente. As epidemias já não são forças incontroláveis da Natureza. A ciência transformou-as num desafio gerível (garrafa meio cheia). Então, porque é que houve tanta morte e sofrimento? Por causa de más decisões políticas”.
Harari aponta
especialmente o dedo, com toda a razão, aos “Presidentes populistas dos Estados
Unidos e do Brasil, que menosprezaram o perigo, recusaram ouvir os
especialistas e em vez disso promoveram teorias da conspiração. Não produziram
um plano federal de acção adequado e sabotaram tentativas de autoridades
estaduais e municipais para deter a pandemia.” E acusa: “A negligência e
irresponsabilidade dos governos de Trump e Bolsonaro resultaram
em centenas de milhares de mortes evitáveis.”
A tese de Harari é que o problema deixou de ser científico para ser político, transmitindo, implicitamente, a ideia de que a complexidade apenas reside no campo da investigação científica e não também na esfera da decisão política. Bastaria a esta seguir a mesma linha de racionalidade de que aquela não pode abdicar. Como diz Harari “nestes tempos de pandemia, a cooperação global não é altruísmo. É essencial para garantir o interesse nacional (…) É que, se um novo vírus saltar de um morcego para um ser humano numa aldeia pobre de alguma selva remota, em poucos dias esse vírus pode estar a passear em Wall Street.”
No entanto, a expectativa de que,
após o sucesso científico, tudo seria politicamente fácil, falhou. A política
está longe de apenas se guiar por critérios de racionalidade. O mundo das
coisas globalizou-se mas a mentalidade (sempre atrasada…) ainda é
predominantemente local. Políticos como Trump e Bolsonaro continuam
a ter grande adesão popular, apesar da sua evidente irresponsabilidade. É,
aliás, oportuno sublinhar que os sucessivos avanços científico-tecnológicos
alimentam constantemente a complexidade própria da política. Veja-se, como
exemplo, este curto excerto de um interessante ensaio de Francisco Louçã sobre
as redes sociais, publicado no mesmo número da revista do Expresso: “Um quinto dos tuítes políticos que
circularam no período decisivo da campanha que elegeu Trump, em 2016,
foi criado por robôs de origem desconhecida, e as notícias falsas “trumpistas”
foram partilhadas 30 milhões de vezes.”
Afinal de contas, a denúncia e as acusações políticas de Harari
põem, paradoxalmente, em causa a sua conclusão (apenas baseada nos avanços
científicos alcançados num prazo espectacularmente curto) de que “a Humanidade
está longe de ser impotente”.
Harari termina o seu
artigo afirmando que, se as coisas voltarem a correr mal no futuro, “será um
fracasso humano e – mais precisamente – um fracasso político.” Mas uma vez
reconhecido que a complexidade está tão (ou mais) presente na política como na
ciência, torna-se mais realista admitir a grande probabilidade de as coisas
voltarem a ser mal geridas no futuro, evento que, sem dúvida, não deixará,
todavia, de constituir um fracasso humano.
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