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01/03/21

NO CORRER DOS DIAS

 Marques da Silva



Tinda – A tarde estende-se silenciosa e serena, até onde o meu horizonte alcança. É uma tarde curta como são as de Inverno. Com excepção das ruas e avenidas principais, todo o restante espaço é neve que se acumula até que a Primavera a transforma em água, por vezes lamacenta. Olhando pela janela, não se vêem pessoas. Recolhem-se, saindo apenas para o que é necessário. Hoje o vento está ausente, amenizando os mais de 30 graus negativos. Tudo funciona, no entanto. A vida não pára pelos nevões, caso contrário, seriam largos meses de inactividade. Tudo isto é uma normalidade, excepto para os que como eu, provêm de outras latitudes. De manhã, visitei o Museu de História do BAM. Estas são as iniciais do traçado ferroviário paralelo à linha transiberiana. A sua construção foi épica. Numa primeira fase foi erguida recorrendo a prisioneiros de guerra, de delito comum e de delitos sociais como então se chamavam. Vinte anos depois, na segunda metade do seu traçado, os grandes obreiros foram as juventudes comunistas, na década de setenta. É uma linha ferroviária de extensão quase infinita e uma obra de engenharia espectacular. Na cidade existe um quadro de honra dedicado a todos os que se destacaram nesses trabalhos duríssimos em condições climatéricas extremas. Quando viajamos sem tempo, adquirimos outra perspectiva na contemplação do que nos é apresentado. Após o almoço não saí, face ao aviso de que a temperatura se iria aproximar dos 40 graus negativos, com queda de neve e vento polar. Estou sentado, observo o horizonte pela janela e escuto a música que sempre me acompanha, retida na memória e que chega até mim, quando o silêncio se sobrepõe aos ruídos da vida. Há momentos em que precisamos de nos ausentar, procurando no longe o que parece impossível ao perto. Vivemos tempos cinzentos, como essas tardes de nuvens pardas que anunciam chuva como uma desgraça. Até que ponto ainda podemos acreditar na humanidade, é a pergunta sem resposta que trouxe comigo. Repito-a em todos os lugares onde me retenho e a solução não chega. No momento de escolher um destino, supus o mais remoto. Quando falamos de antípodas, sugerem-nos a Austrália ou Nova Zelândia. Se dizemos, Extremo Oriente respondem com o Japão ou, mais recentemente, a China. Nestes momentos, sempre me socorro de Régio, «não, não vou por aí! Só vou por onde me levam os meus próprios passos…». Ocorreu-me pensar no Extremo Oriente siberiano, da desconhecida Rússia*. Num primeiro instante, talvez seduzido pela atracção das ilhas e pensando em Tchekhov, pensei na Ilha de Sacalina. Hesitei, mas atraíram-me os vulcões, o isolamento e a distância e assim estou a caminho da longínqua península do Kamchatka. É uma viagem morosa, pois vim tomando os comboios locais, quase de cidade a cidade. Permitiu-me observar nos temps de espera. Olhar, como nos ensinou Sophia. «Viajar é observar». Assim fiz. Até aos Urais as cidades lembraram-me os tempos idos da revolução, Vladimir, Nijni Novgorod, Kazan, Ufa, Perm, Ekaterinburg, as páginas de Gorki, Tolstói, Dostoievski. É uma viagem plena de melancolia, como o poema de Viktor Goussev, Полюшко-поле («Planície, minha querida planície, planície ampla, minha querida planície!»). A linha estende-se, inúmeras vezes, por rectas muito extensas e a passagem de comboios é constante numa nova rota da seda entre a China e a Europa. Rodeiam-nos sempre árvores e mais árvores, agora totalmente brancas como toda a paisagem à nossa volta. São raras as aldeias e distantes entre si. Há locais onde os apeadeiros, não têm nome, apenas o km ferroviário. Deduzo que algures, afastado da linha, haverá gente, aldeias. Quando olhamos e vemos que a neve cobre tudo, pensamos sobre como é possível viver aqui. Após os Urais penetramos na profundidade da Sibéria e desfilam ao nosso olhar grandes cidades como Omsk, Novosibirsk e Krasnoiarsk. As cidades siberianas cresceram no século vinte, pelo que são cidades relativamente novas. Em qualquer uma delas ainda são visíveis as consequências do desaparecimento do regime soviético. Prédios sem manutenção, casas de madeira envelhecidas, com visíveis sinais de pobreza, ruas esburacadas, como se tivesse desaparecido qualquer sentimento comunitário. Na pequena cidade de Taishet, aguardei várias horas por um comboio que se dirigisse para a linha Baikal Amur Magistral, a BAM. A informação que me forneceram dizia que poderia viajar numa das inúmeras composições de mercadorias, mas que teria de esperar. À saída da estação há uma praça aberta. No centro existe um memorial aos caídos na Grande Guerra Pátria. Não me atrevi a sair, face a temperatura tão glacial. Fiquei pela sala da estação e deixei-me cair nessa sonolência que nos conduz o pensamento para outros tempos e outras épocas. Visitamos o passado. Há momentos em que nos faz bem, estar só e deixar a memória vaguear sem destino. Foi o que fiz, como se conversasse com alguém, sem tempo e sem objecto. Falar de tudo, saltando de tema, consoante o diálogo evoluía. Creio que nos aconteceu isso, duas ou três vezes, conversarmos como se a vida se resumisse ao nosso diálogo. O comboio que me levaria chegou ao nascer do dia. Estas composições são muito longas, chegando a maioria delas a estender-se por cerca de um quilómetro. Viajar na frente abre-nos outra perspectiva do que vemos. Estamos no Inverno, pelo que não me é possível ver os imensos verdes que cobrem todas estas florestas. Percebo rapidamente que tendo mil e oitocentos quilómetros pela frente, vão ocorrer mudanças pelo caminho. Atravessamos o Angorá em Bratsk, a grande cidade deste trajecto e de seguida falam-me da beleza do Rio Kuta, no fim da Primavera e Verão, mas só posso adivinhar-lhe as margens pelo caudal gelado. Ao aproximar-nos da parte norte do Baikal, surgiram as montanhas. Será nas margens do grande lago, na cidade de Severobaikalski, que o comboio detém a marcha para mudar de maquinista. Nesta parte do dia, envolto em alguma tristeza pela impossibilidade de ver as cores cristalinas e azuis do Baikal, chegou até mim essa nostalgia da distância, do que não temos, do que não podemos ver. A locomotiva é agora a diesel, quer dizer, são duas locomotivas pesadas, pois grande parte deste trajecto não se encontra electrificado. Terminaram as extensas planícies e há partes do trajecto em que a marcha é lenta pela inclinação do terreno. Dão-me pormenores do Rio Niukja e convidam-me a visitar a região no Verão. Entramos em Tinda pelo Norte, mas atravessamos o rio do mesmo nome e passamos para Sul, onde fica a estação. A cidade estende-se na margem oposta. A noite chegou enquanto escrevo estas linhas. Continuo sem escutar um som, um ruído, o que me permite ouvir o vento e ver a neve a tombar sobre o chão branco. Cai em grandes farrapos. No meu cérebro ouço Beethoven dedilhar no piano o seu “Silêncio”. Quantas vezes não escutamos em silêncio esta música!

PS – Esta carta, foi escrita há muitos dias. Pensava seguir de comboio até Yakutsk, e de seguida por estrada até Magadan, mas a linha ainda não se encontra totalmente construída e assustou-me a ideia de viajar mais de mil quilómetros numa estrada coberta de neve com temperaturas a rondar os 30 graus negativos. Prossegui à pressa pela linha BAM até à costa do Pacífico, à cidade de Vanino, onde a coloquei no correio.


* A revista Fugas de 27 de Fevereiro, numa Volta ao Mundo em 80 Livros, recomenda 73 autores, menciona 33 países e 9 regiões ou continentes (cito de memória), sem um único escritor russo, ou seja do maior país da Europa. Apenas refere um livro de Fréderic Chaubin sobre a arquitectura soviética. 

A revista Bula em 15 Livros fundamentais da literatura russa, selecciona 8 escritores do século XIX e 6 dissidentes soviéticos. https://www.revistabula.com/14508-15-fundamentais-da-literatura-russa/

A Fnac em 6 escritores russos que devias mesmo conhecer, recomenda 5 do século XIX e 1 naturalizado estado-unidense. https://www.fnac.pt/6-escritores-russos-que-devias-mesmo-conhecer/cp2100/w-4

Na Wikipédia encontramos menção a 19 escritores do século XIX, 2 do século XX já falecidos e apenas dois da actualidade, Boris Akunin e Vladimir Sorokin. Na poesia, dos 6 poetas mencionados o único vivo é Valeri Brainin-Passek com dupla nacionalidade, alemã e soviética. Dos dramaturgos apenas conhece um, do século XIX e dos ensaístas, traz-nos 1 do século XVIII, 2 do século XIX e 1 do século XX, já falecida e radicada nos EUA. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_autores_da_R%C3%BAssia

Necessitamos de ir ao Brasil, através da revista Rússia Beyond, para encontrar referência a escritores russos vivos. https://br.rbth.com/cultura/79274-112-genios-da-literatura-russa




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