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01/02/21

O CATÁLOGO

 António Mesquita


"L'hypocrisie est un vice à la mode et tous les vices à la mode passent pour vertus."

Dom Juan, ou le Festin de Pierre (1665) de Molière


O que nos diz hoje o mito de Dom Juan? Que há de novo sobre o sedutor impenitente num tempo em que a mulher disputa cada vez mais ao outro género o protagonismo social? Talvez que o personagem, hoje, como sempre, não faça tanto questão de sexo mas de política das almas, de poder. Sedução também é isso. É Agustina que diz que a maldade é uma crise da sedução e não o prazer nem o crime.

O mito de D. Juan tem longa vida. Porque os sentidos serão sempre mais convincentes do que a realidade. D. Juan é um técnico que não acredita em si, senão quando experimenta o sucesso. Para amar uma só mulher é preciso aceitar a passagem do tempo. Pelo contrário, a aventura é um recomeço e a abolição do tempo. Os romances deste género são desprovidos do trágico. Os riscos desfiados pela narração são parte de uma placenta  confirmando que nada é irreversível e que tudo pode voltar ao princípio.   

Na aventura dá-se de novo as cartas, sem que se corra um risco metafísico. O catálogo é o jogo das nacionalidades e dos tipos femininos. Porém, o herói tinha que chocar-se com o mundo. E é a figura do velho pai que desperta a atenção para o outro crime: o do sistema amoroso. A peça do catálogo pela morte do comendador e pelo amor paterno é retirada do jogo para desafiar o aventureiro a olhar-se ao espelho.

Nenhuma mulher pode redimir o conquistador sem esvaziar de sentido toda a sua vida. A tomada de consciência, através da diferença irredutível de Elvira, equivale à morte. A personagem está condenada à fuga para diante. Mas a revelação mística permite conservar o passado como um preâmbulo da verdadeira vida, o tempo das trevas e a aceitação da morte em troca da eternidade da alma e do sentimento cósmico. Nenhuma mulher pode ser divinizada sem depreciar o catálogo, nenhuma mulher pode ser objecto dum amor eterno e indiscutível. D. Juan é necessariamente um ateu, e o seu principal defeito é o de não ser capaz de jurar, de acreditar. Enquanto que a vertigem da colecção – não se trata duma verdadeira posse –, não é preciso fé para a conhecer.

Contudo, D. Juan seria inverosímil sem o comentário irónico de Leporello. Se a ária do catálogo fosse cantada pelo próprio fidalgo, ele deixaria de ser um apaixonado do abolimento. Se ele fosse capaz dum discurso distanciado sobre si próprio, não seria o herói negativo que é. D. Juan é o contrário do frívolo. É demasiado superficial a ideia dum corredor de fêmeas, dum desportista. Na sua adesão, há toda a loucura do suicídio. Mas igualmente toda a atmosfera exuberante das acções infantis. O que faz o fidalgo são travessuras fora da idade. E todo o desejo de afirmação do poder sedutor é uma pulsão regressiva. Porque são essas as armas  da criança. E as conquistas sucessivas servem para demonstrar perante o próprio a capacidade de reter a atenção materna.

Que uma cultura tão profundamente católica tenha engendrado este mito não é surpreendente. É ainda a ideia de Deus que esclarece D. Juan. Ele é uma incarnação do diabo, na medida em que seduz e transvia. É um corruptor da jovem principiante, um homem sem fé em nada. O homem que apenas procura o prazer é menos “diabólico” do que este herói teológico. Porque na sua satisfação ele arrasta sempre alguém consigo. E que má-consciência pode ter um coleccionador? O inferno não é uma colecção especial? 

A actualidade de D. Juan é a mesma actualidade do mal. Os erros, os desastres, os crimes já não são percebidos como entidades contingentes e impessoais. A falta de Deus manifesta-se por esta necessidade de dar um sentido simbólico ao que vai mal no mundo. 

Na sociedade grassa um dom juanismo anónimo e assexuado. Os novos poderes criadores de mitos transformam-nos em seres de catálogo, vigiados por câmaras invisíveis. Ninguém ainda fechou a colecção para termos o verdadeiro totalitarismo. Mas basta um vírus invisível para nos dar uma antevisão do que é um catálogo fechado.

 

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