António Mesquita
O filme de Fellipe Barbosa "Gabriel e a Montanha" inspira-se num caso real. O amigo do realizador, Gabriel Buchmann, como preparação da sua tese académica, quis "estudar a pobreza" no mundo e lançou-se numa aventura juvenil à volta do globo para acabar morrendo de hipotermia a 3 mil metros de altitude, em África, no Malawi, em 2009.
Os capítulos do filme correspondem a quatro países africanos (Quénia, Tanzânia, Zâmbia e Malawi). Ele parece saber o que quer, estudar as pessoas no seu meio, viver entre elas, durante a sua breve estadia, aprender os seus costumes, as suas expressões, sem pecado de "turistar". Procura distanciar-se tanto quanto é possível das recomendações do guia de viagem. Entre os Massais do Quénia, por exemplo, veste-se como eles e come o que eles comem. Ajuda com o dinheiro da sua bolsa algumas famílias indígenas.
A meio da viagem recebe a visita da sua namorada do Brasil e apesar do prazer físico e das saudades desafogadas, as discussões são frequentes por causa das ideias fixas de Gabriel, do seu irrealismo. Quando voltou a ficar só, quis ainda "queimar os últimos cartuchos" numa expedição arriscada, no Monte Mulanje, no Malawi. Aventura-se à última incursão ao cimo gelado, com as sandálias de sempre que para ele são uma espécie de talismã. Vemo-lo nas cenas finais afligido pelo frio e com os pés doridos, perdido na bruma.
Vasco Baptista Marques, no "Expresso", fala de sobranceria cultural. Como se este jovem estivesse convencido de tudo sem provas, apenas pelo sentimento da sua superioridade face à cultura indígena. Mas devemos notar que ao nível pessoal, Gabriel estabelece relações fáceis e cria empatia à sua volta. É caso para dizer que existe aqui uma intolerância das ideias aliada a um instinto seguro e a uma bonomia natural.
Há uma cena capital para compreender a personagem. Vencido o cume do Kilimanjaro, no Quénia, Gabriel enterra sob a neve uma fotografia do pai. Esse gesto remete-nos para um idealismo de um outro tipo, quase religioso. A "irresponsabilidade" de Gabriel talvez seja uma forma de heroísmo consagrado ao culto do seu progenitor. Tanto no sentido de se achar transfigurado por essa inspiração, como na vocação de um sacrifício. O seu optimismo cego, é o oposto da visão do grande dramaturgo russo citado por Cristina Campo:
"O famoso pessimismo de Tchekov é afinal o único optimismo possível, o optimismo do médico quando se torna mediador: ver o mundo como é, os nossos semelhantes como são e juntamente tentar "ler de outra forma", decifrar o gigantesco significado hieroglífico com a única chave que lhe é dada: a força de aceitar ao mesmo tempo a ordem do mundo e aquilo que continuamente a supera."
Claro que o filme se projecta numa outra dimensão, para lá da pessoa real que foi Buchmann. Como se pode ver por este extracto do livro "Gabriel, as Montanhas e o Mundo" de Alícia Uchôa e Fátima Chaves de Melo Buchmann, essa pessoa parece ser mais simples e adolescente no seu entusiasmo e ingenuidade do que a personagem interpretada por João Pedro Zappa.
"Etapa mundo comunista-ortodoxo-budista cumprida, parto pra rodar pelo mundo indiano, depois pelo pouco que me conheço, sei que não conseguirei resistir a ir pro Nepal pra cruzar o Himalaia no auge do inverno, e depois cruzo o mundo árabe – Paquistão, Irã e Síria – pra cair na África, origem dos povos e onde não faço ideia do que me espera… Já me resignei a deixar a costa oeste africana pra uma próxima viagem e farei a rota Cairo-Cape Town com o que estiver pelo caminho antes de voltar pra casa no fim de julho..."
Ou neste seu mail de 5 de Junho de 2008:
"Tenho que botar essas coisas na cabeça. Europa, América Latina e Ásia são Disneylândia. Mas a África não. É outra parada. Tô criando essa consciência aos poucos, não posso ser tão destemido por essas bandas quanto sou normalmente, não sei se o meu anjo da guarda se garante tanto por lá."
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