Mário Martins
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“O mito é o nada que é tudo”
Fernando Pessoa
Como qualificar este excerto (citado por Pedro Teixeira da Mota in “A mítica ideia de um império” – Revista Expresso, 2020-09-26) de uma entrevista dada em 1926, a propósito do Quinto Império Português, por esse grande pensador que Fernando Pessoa também foi?:
“Há só uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação – a construção ou renovação e a difusão consequente e multímoda de um grande mito nacional. De instinto, a Humanidade odeia a verdade, porque sabe, com o mesmo instinto, que não há verdade, ou que a verdade é inatingível. O mundo conduz-se por mentiras; quem quiser despertá-lo ou conduzi-lo terá de mentir-lhe delirantemente e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir a si mesmo e se compenetrar da verdade da mentira que criou. Temos, felizmente, o mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa. Nosso trabalho é pois mais fácil; não temos de criar um mito, senão que renová-lo. Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o encarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as novas descobertas, a criação do mundo novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião.”
Cínico e provocador? Talvez. Desconcertante e fascinante? Sem dúvida.
As frases que mais me impressionam (isso do Quinto Império não me interessa), sobretudo num tempo, como o actual, de descarado uso político da mentira, são essas de sustentarem que “de instinto, a Humanidade odeia a verdade, porque sabe, com o mesmo instinto, que não há verdade, ou que a verdade é inatingível.”; e que “o mundo conduz-se por mentiras.” Frases que, lidas simplesmente, certamente farão as delícias da extrema direita populista, mas cujo significado, em contexto, é mais complexo.
O contexto é o da construção ou renovação de um mito, quer dizer, por definição, do que não é real ou verdadeiro, embora inspirado nele. Poderemos então concluir que o mito, como não é verdadeiro, é uma mentira? Definindo-se esta como falsidade, engano, ou embuste, o mito será uma mentira se quiserem tornar o que é apenas símbolo em coisa real e verdadeira mas, despido dessa intencionalidade, é uma alegoria que, na psicologia humana, tanto se confunde com o real e o influencia.
No entanto, a afirmação de que não há verdade, ou que a verdade é inatingível, transcende o contexto mitológico para se situar numa exegese do conhecimento. No artigo anterior defendi, na mesma linha pessoana, a impossibilidade humana de aceder à verdade natural, quer dizer, à que existe fora de nós (lembremo-nos que só existimos há pouco tempo), mas sem, com isso, pôr em causa, no patamar humano, a verdade assente na prova.
A força simbólica do mito, tão cara a Pessoa, não é, de facto, tudo.
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