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01/12/20

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva 



Agora que o tempo parece mais acelerado, por muito que se esforce em retê-lo, nessa marcha inevitável para a eternidade, pelo Outono, aproxima-se do rio, e enquanto caminha numa lentidão meditativa, deixa correr os afluentes da memória. O olhar, vagueia enquanto caminha pelas velhas ruas de uma cidade que já foi operária. Aquelas artérias cheias de vida e hoje sonolentas e envelhecidas, esquecidas até por quem as devia cuidar. A sua estreita largura, a ausência de passeios, o empedrado, as janelas coloridas, os vasos à porta. Quando espreitamos, vemos corredores, ladeados de outras casas, escondidas do olhar de quem passa. Chegam-lhe os sons das meninas da infância que povoavam a sua vida e desapareceram para sempre, uma que nem chegou a conhecer o nome, pois em criança era o diminutivo que prevalecia, a outra partiu já tarde, em silêncio, por vontade própria, e quando a informação lhe chegou sentiu essa dor inapagável do irremediável, do que é definitivo, do nunca mais. A pequena artéria abre-se numa nesga de pedra e permite que o olhar procure a praia na outra margem, o comboio que passa em direcção à ponte nova e elegante, em paralelo com a centenária que cumpriu o papel que lhe destinaram. Depois é o granito que nasce soberbo do outro lado, que aceitou descansado o mosteiro que já não é, as orações a Deus substituídas pelo ferro das armas. Como somos tão cruéis com nós próprios! A velha cidade que já esteve emparedada entre grandiosas muralhas, nasce pousada na encosta. O ocre das cores das paredes, a voz das mulheres chamando alguém, as escadas sem fim, abruptas sobre as águas, os labirintos esguios de ruas cujos nomes se perdem no tempo. O olhar perde-se também no horizonte como alguém que está em viagem, na procura, não do desconhecido, mas do que há muito aconteceu. Os olhos castanhos, dessa cor amendoada que lhe faz recordar o aroma da canela, as palavras pronunciadas com ternura e o espaço onde o rio encontra o mar, onde a procurava, entre áleas apertadas, entre muros altos que protegiam o viver de gentes enriquecidas. Mas essa foi uma época de olhares sucessivos, encontrados em cada curva da estrada e que foram deixando um rasto na memória que, olhado à distância, aparecem com uma grandeza ainda maior e quase feliz, diluindo até, as dificuldades que o quotidiano apresentava. Nos românticos caminhos que foram de há dois séculos, sente a tranquilidade desses finais de tarde, quando o sol vai descendo entristecido sobre o poente enquanto enrola os seus laços dourados nos ramos das heras que cobrem paredes e deixam desenhos de verde sobre os muros ou brilham sobre um dourado fosco no que ainda resta das cores das buganvílias. A taiga, a imensa estepe, o silêncio sentido na travessia de longas florestas de bétulas e que um outro Outono começava a cobrir de neve, transformando esse silêncio num longo momento de solidão, de encontro com o nosso eu, a nossa existência e o que nos rodeia. Regressam os olhos amendoados num rosto quase asiático e de beleza extasiante. O escaldante deserto das caravanas infindáveis, as velhas ruas de uma cidade morta pela água que deixou de chegar e o azul encantador da mesquita que se ergue soberba por entre o dédalo de ruas. As montanhas azuis olhadas de uma altura assustadora, os tons esbatidos pela distância não amorteciam o fascínio atractivo que exercem com as suas eternas neves, cobrindo a pedra nua. Os caminhos que tentou adivinhar e que desejou percorrer. A ponte bela e elegante que permite olhar o passado e o infinito em cada um dos seus lados e deixa ver a pequena aldeia que já foi, separada da cidade e na qual a burguesia enriquecida foi pousando em dias de repouso e prazer. É de novo, o enredo dos caminhos, a poesia das flores que transbordam das paredes e dão um colorido que fazem adivinhar jardins cativadores e repousantes, onde sabe bem saborear o declínio das tardes entre chilreios de pássaros que se acolhem no interior da copa das grandes árvores preparando o repouso nocturno. Quando por fim sobe ao alto cerro onde a ponte atravessa o rio e estira o olhar vivido para a longitude marítima, onde os dois azuis se misturam e confundem, apura o ouvido para os cativantes sons do longínquo, “águas passadas do rio, meu sonho vazio, não vão acordar”, enquanto uma moldura como um rodela de espantoso vermelho tremeluzindo cobre o horizonte, repleto de amarelas tonalidades, num cenário de fim de vida, recortando a figura minúscula de um cargueiro que atravessa a mancha, aparecendo obscurecido pela contraluz. Em baixo, a alguma distância, os sons tardios dos sinos da igreja, atravessam aquela evolução crepuscular. Tangem tristes, fatigados, num esforço para que o seu dobre chegue ainda às almas dos crentes. Ao escutá-los, na solidão desse dia, já não pergunta por quem dobram os sinos.
       

 







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