Marques da Silva
... o mar parece sempre belo, mas era sobretudo da hora, do momento, esse instante em que mudava, transformava a forma de estar, desse vaguear entre o dia e a noite, que o via com essa beleza apelativa. Passava pelo mar como quem tenta cruzar um espaço neutro, para se habituar a esse patamar de solidão, sobretudo de silêncio, em que os pensamentos apenas se cruzam no interior da memória e têm de abrir caminhos, espreitar o horizonte, tomar decisões. Ficava pelo Café, lendo um pouco, umas vezes concentrado, outras, distraído, deixando que o olhar navegasse mar adentro, a proa mergulhando nas águas e subindo empinada e molhada. Foi num desses instantes que aquele rosto se cruzou, se intrometeu naquela linha de observação que o conduzia ao longe marítimo. Olhada assim, de perfil parecia perfeita. A pele morena, mais da cor do que do sol, alta mas proporcionada e com formas que desenhavam o prazer do belo. Durou uma fracção de tempo a sua permanência no seu horizonte visual, mas imaginou que ali continuava enquanto recuava no tempo ao encontro de memórias guardadas nos recantos serenos da história, da sua, claro. Fora a primeira vez que lhe distribuíam aquela missão, como lhe chamava, com a função de a dirigir. De a projectar, primeiro e, concebida, colocá-la no terreno e concluí-la com êxito. Procurou manter-se calmo e procurar que tudo decorresse como em outras ocasiões. Afinal, já tantas vezes repetira percursos, gestos, cuidados e atenções. Os minutos pareciam demorar mais tempo a avançar a somarem horas. Enfim, o dia foi-se extinguindo e procurou que os seus movimentos acompanhassem essa lentidão. E lá chegou a noite. Todo um ritual tinha início. A sua atenção redobrou e a observação do que o rodeava, tornou-se mais interrogativa. O roteiro que seguia, deixou de obedecer a uma bússola que lhe indicasse o destino e passou para caminhos que iam e vinham num percurso que aparecia contraditório, mas que dava solidez à sua própria segurança. Dirigiu-se ao local previamente combinado e, entre breves palavras, recolheu as mensagens que iria espalhar ao vento, levar aos que as lessem, a esperança de um outro tempo e de que as ideias não morrem, nem apodrecem nas sombrias celas dos regimes dos velhos abutres. Recados que voariam pela madrugada se espalhariam pela cidade, incentivando os seres humanos a erguerem esse canto pela liberdade da vida. A noite começava, mas restava saber quem o acompanharia naquele encargo de levar a voz dos que não se viam, mas na obscuridade das ruas, existiam, desafiando o medo ou caminhando com ele. A vida transporta sempre os seus imprevistos e, mesmo quando se impõe rigor ao que se planifica, pode surgir uma surpresa que obriga a modificações, a decisões que implicam um recomeço. No último momento, um companheiro não comparece, pelo que haveria de aguardar para mais tarde, o conhecimento de quem o substituiria, quem poderia ocupar esse lugar. O tempo marchava agora entre o rápido e o lento, nessa ansiedade de poder ter que improvisar. Alcançada essa hora em que os ponteiros do relógio se acham, dirigiu-se com passo firme para o encontro e, mesmo antes de soletrar a palavra mágica já reconhecera quem seria a sua companhia naquela noite. Não era bela, mas atraente, de poucas palavras e não muitos sorrisos. Possuía uma personalidade que afastava um pouco as pessoas e, o retraimento dele, não permitiu que tivessem trocado antes muitas conversas. Aqui e ali encontravam-se, mas era raro. Enquanto se aproximavam e cumpriam o ritual da identificação, fotografou-lhe o rosto e concluiu que as sardas lhe aumentavam a atracção. Acordaram sobre o modo de proceder e dirigiram-se para o bairro onde procurariam levar a bom porto aquele acto de soltar palavras para o pensamento dos homens. Cada função obrigava à sua fadiga. Ela, em baixo, observava, o que implicava um controlo total dos movimentos, tentando antecipar quem se pudesse aproximar, ler em cada caminhante um destino. Ele, subia e descia três lanços de escadas e caminhava ao longo das varandas. E bloco a bloco, tudo foi evoluindo sem qualquer registo que os alertasse para algo de anormal. Assim foi correndo o tempo, até que, quase já todo o bairro percorrido, perto do fim, ela alertou-o para a necessidade de interromperem e se afastarem face a um comportamento que lhe pareceu de todo fora do padrão de normalidade estabelecida. Ele não hesitou e saíram do perímetro do bairro, caminhando ao longo da rua. Faltava, para que tudo parecesse vulgar no seu comportamento, que assumissem a postura de dois jovens que àquela hora tardia caminhavam. Ele hesitou, mas ela, pelo medo ou pela necessidade, não teve dúvidas, agarrou-lhe o braço e colocou-o sobre os seus ombros rodeando-lhe o pescoço e assim percorreram largas centenas de metros até se sentirem seguros. Quando a segurança lhes pareceu garantida, despediram-se e separaram-se. Hélder ficou a vê-la afastar-se. Foi a primeira mulher que abraçou. No ano seguinte, ele partiu para as longas estepes brancas do futuro e ela para as noites negras do silêncio onde a liberdade percorria atalhos na impossibilidade de se estender por largas avenidas. Nunca mais se encontraram e, agora naquela tarde, no rosto quase perfeito daquela mulher que se intrometeu entre o seu olhar e o mar, lembrou-se da Sara.
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