01/06/20
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
... o mar parece sempre belo, mas era sobretudo da hora, do momento, esse instante em que mudava, transformava a forma de estar, desse vaguear entre o dia e a noite, que o via com essa beleza apelativa. Passava pelo mar como quem tenta cruzar um espaço neutro, para se habituar a esse patamar de solidão, sobretudo de silêncio, em que os pensamentos apenas se cruzam no interior da memória e têm de abrir caminhos, espreitar o horizonte, tomar decisões. Ficava pelo Café, lendo um pouco, umas vezes concentrado, outras, distraído, deixando que o olhar navegasse mar adentro, a proa mergulhando nas águas e subindo empinada e molhada. Foi num desses instantes que aquele rosto se cruzou, se intrometeu naquela linha de observação que o conduzia ao longe marítimo. Olhada assim, de perfil parecia perfeita. A pele morena, mais da cor do que do sol, alta mas proporcionada e com formas que desenhavam o prazer do belo. Durou uma fracção de tempo a sua permanência no seu horizonte visual, mas imaginou que ali continuava enquanto recuava no tempo ao encontro de memórias guardadas nos recantos serenos da história, da sua, claro. Fora a primeira vez que lhe distribuíam aquela missão, como lhe chamava, com a função de a dirigir. De a projectar, primeiro e, concebida, colocá-la no terreno e concluí-la com êxito. Procurou manter-se calmo e procurar que tudo decorresse como em outras ocasiões. Afinal, já tantas vezes repetira percursos, gestos, cuidados e atenções. Os minutos pareciam demorar mais tempo a avançar a somarem horas. Enfim, o dia foi-se extinguindo e procurou que os seus movimentos acompanhassem essa lentidão. E lá chegou a noite. Todo um ritual tinha início. A sua atenção redobrou e a observação do que o rodeava, tornou-se mais interrogativa. O roteiro que seguia, deixou de obedecer a uma bússola que lhe indicasse o destino e passou para caminhos que iam e vinham num percurso que aparecia contraditório, mas que dava solidez à sua própria segurança. Dirigiu-se ao local previamente combinado e, entre breves palavras, recolheu as mensagens que iria espalhar ao vento, levar aos que as lessem, a esperança de um outro tempo e de que as ideias não morrem, nem apodrecem nas sombrias celas dos regimes dos velhos abutres. Recados que voariam pela madrugada se espalhariam pela cidade, incentivando os seres humanos a erguerem esse canto pela liberdade da vida. A noite começava, mas restava saber quem o acompanharia naquele encargo de levar a voz dos que não se viam, mas na obscuridade das ruas, existiam, desafiando o medo ou caminhando com ele. A vida transporta sempre os seus imprevistos e, mesmo quando se impõe rigor ao que se planifica, pode surgir uma surpresa que obriga a modificações, a decisões que implicam um recomeço. No último momento, um companheiro não comparece, pelo que haveria de aguardar para mais tarde, o conhecimento de quem o substituiria, quem poderia ocupar esse lugar. O tempo marchava agora entre o rápido e o lento, nessa ansiedade de poder ter que improvisar. Alcançada essa hora em que os ponteiros do relógio se acham, dirigiu-se com passo firme para o encontro e, mesmo antes de soletrar a palavra mágica já reconhecera quem seria a sua companhia naquela noite. Não era bela, mas atraente, de poucas palavras e não muitos sorrisos. Possuía uma personalidade que afastava um pouco as pessoas e, o retraimento dele, não permitiu que tivessem trocado antes muitas conversas. Aqui e ali encontravam-se, mas era raro. Enquanto se aproximavam e cumpriam o ritual da identificação, fotografou-lhe o rosto e concluiu que as sardas lhe aumentavam a atracção. Acordaram sobre o modo de proceder e dirigiram-se para o bairro onde procurariam levar a bom porto aquele acto de soltar palavras para o pensamento dos homens. Cada função obrigava à sua fadiga. Ela, em baixo, observava, o que implicava um controlo total dos movimentos, tentando antecipar quem se pudesse aproximar, ler em cada caminhante um destino. Ele, subia e descia três lanços de escadas e caminhava ao longo das varandas. E bloco a bloco, tudo foi evoluindo sem qualquer registo que os alertasse para algo de anormal. Assim foi correndo o tempo, até que, quase já todo o bairro percorrido, perto do fim, ela alertou-o para a necessidade de interromperem e se afastarem face a um comportamento que lhe pareceu de todo fora do padrão de normalidade estabelecida. Ele não hesitou e saíram do perímetro do bairro, caminhando ao longo da rua. Faltava, para que tudo parecesse vulgar no seu comportamento, que assumissem a postura de dois jovens que àquela hora tardia caminhavam. Ele hesitou, mas ela, pelo medo ou pela necessidade, não teve dúvidas, agarrou-lhe o braço e colocou-o sobre os seus ombros rodeando-lhe o pescoço e assim percorreram largas centenas de metros até se sentirem seguros. Quando a segurança lhes pareceu garantida, despediram-se e separaram-se. Hélder ficou a vê-la afastar-se. Foi a primeira mulher que abraçou. No ano seguinte, ele partiu para as longas estepes brancas do futuro e ela para as noites negras do silêncio onde a liberdade percorria atalhos na impossibilidade de se estender por largas avenidas. Nunca mais se encontraram e, agora naquela tarde, no rosto quase perfeito daquela mulher que se intrometeu entre o seu olhar e o mar, lembrou-se da Sara.
O LIMIAR
António Mesquita
https://images.app.goo.gl/zuVDZXHBG49Jhtu46
"Akhnilo", um conto de James Salter incluído na selecção intitulada "A última noite" editada pela Livros do Brasil é a história de uma epifania. Tudo é estranho e tudo poderia parecer um sonho, mas ficamos agarrados à busca nocturna de Eddie Fenn como se fosse urgente e como, mais do que um sonho, o enigma por resolver fosse uma questão de vida ou de morte.
Já passava das 3 da manhã, quando Eddie foi atraído por um som estranhíssimo que o levou a levantar-se sem acordar a mulher, e a escorregar do telhado do alpendre, por baixo da sua janela, para a rua. "Estava a entrar numa noite de redes incontáveis, de olhos irrequietos." Continuou por alguns metros em direcção do que lhe pareceu a origem do fenómeno que à medida que se aproximava lhe parecia mais uma voz misteriosa repetindo quatro palavras irreconhecíveis que se foi sumindo quanto mais chegava junto da fonte emissora.
Decidiu voltar para casa tentando recordar essas palavras que não pertenciam a nenhuma língua que ele conhecesse. Já de volta encontrou a esposa que se levantara preocupada e queria saber o que se passava. E. não lhe pôde responder no sentimento que qualquer distracção lhe faria perder as palavras. De tal modo, que todas elas se esvaíram com excepção da última que se pronunciava "Akhnilo".
Não conhecemos o desenvolvimento dessa experiência, nem como a família e a comunidade reagiram ao transe de Eddie. Provavelmente foi tratado como um caso de loucura temporária, a não merecer mais cuidados. Para Eddie, podemos conjecturar que nada mais foi igual na sua vida.
O autor não nos dá qualquer indicação sobre o significado da única palavra retida. É fácil especular sobre certas conotações como Ak poder ser a abreviatura de All Knowing e nilo ter a ver com o nihil latino para nada.
O importante é a ideia que o conto trasmite de que o nosso mundo, o mundo de todos nós não nos dá um significado para a sua existência, a simples continuação não tem sentido. Nem é uma questão das coisas e dos sentimentos que despertam em nós, assim como as pessoas serem apenas aparências. Não sabemos se qualquer coisa como a verdade está por detrás delas e precisa de ser descoberta.
Eddie sempre achou que a frustração pessoal, a sensação de ficar aquém das suas possibilidades era uma ideia romântica. Esse romantismo tinha, por outro lado o efeito de trazer urgência à sua vida. Ele costumava dizer que "Nada está em segurança por mais de uma hora."
Depois de ler a colectânea de Salter, deparei-me (em "Os Inovadores" de Walter Isaacson) com o relato duma personagem completamente diferente, Stewart Brand que, nos anos 60, durante o movimento hippy, chegou a uma visão igualmente transformadora sobre o nosso lugar no planeta e o do planeta no espaço. "Um mês depois do Trips Festival, em Fevereiro de 1966, Brand estava sentado no seu terraço de cascalho em North Beach, São Francisco, desfrutando dos efeitos de 100 microgramas de LSD. Olhando para o horizonte, cogitava numa coisa que Buckminster Fuller dissera: a nossa perceção de que o mundo é plano e se estende indefinidamente, em vez de redondo e pequeno, deve-se ao facto de nunca o termos visto do espaço. Instigado pelo ácido, deu-se conta da pequenez da Terra e da importância de outras pessoas também terem essa consciência. Aquele ponto de alavancagem fundamental sobre os males do mundo tinha de ser divulgado. Bastaria uma fotografia – uma fotografia da Terra vista do espaço. Aí estaria, o plano inteiro, para que todos o vissem, minúsculo, à deriva, e nunca mais ninguém voltaria a perceber as coisas da mesma maneira, recordou. Isto incentivaria, acreditava ele, o pensamento de visão geral, a empatia por todos os habitantes do planeta e o sentido de pertença. Resolveu convencer a NASA a tirar essa fotografia." Depois de uma campanha muito original em que perguntava «Por que motivo ainda não vimos uma fotografia da Terra inteira?», em Novembro de 1967, "(...) a NASA cedeu. O satélite ATS-3 tirou uma fotografia da Terra de uma altura de 33 mil e oitocentos quilómetros, servindo de capa e inspiração para o novo projecto de Brand, o "Whole Earth Catalog".
A diferença entre a visão de Brand e a do conto de Salter é que aquela veio pela mão da tecnologia e parece estabelecer uma nova ordem de factos ou um novo limiar das aparências.
MEMÓRIAS
Manuel Joaquim
Depois de muitos dias recolhido em casa por causa da quarentena, num fim de tarde, vim até à porta de casa apreciar a rua, olhar as casas, os prédios, os carros estacionados. Não vi nenhum vizinho, não vi ninguém, nenhum carro passou durante o tempo que lá estive, os lugares de estacionamento praticamente vazios. Um deserto.
Veio-me à memória os tempos de menino. Poucos carros circulavam, jogava-se à bola na rua, campeonatos com sameiras nas guias dos passeios, a casquinha com as portas da rua a servirem de balizas, corridas de arcos e de carros com rolamentos, jogava-se o peão e saltava-se ao eixo. Às vezes, pela tardinha, amarrava-se uma linha nos batentes das portas e escondidos puxava-se pela linha para as pessoas virem à porta e não viam ninguém. Brincadeiras.
Na rua, tão pequena, existiam três sapateiros, três alfaiates, calceiras, modistas, cabeleireira, camiseiras, um funileiro, uma padaria, um fabricante de graxa para o calçado, um mercador de solas, um picheleiro, uma oficina de ourivesaria, uma oficina de caixas de estojo, uma oficina de bicicletas que tinha bilhar de matrecos, uma escola primária masculina, uma taberna com carvoaria ao lado e um tasco onde aos sábados se encontravam tocadores de viola e fadistas onde cantava-se o fado a ao desafio. Existia um grande armazém de mobílias com operários a executarem acabamentos.
Numa viela, agora truncada, conhecida pela ilha das pulgas, mas que de facto eram duas, viviam centenas de pessoas de todas as idades. O Senhor João, que morava lá, já com mais de oitenta anos, tinha sido padeiro na antiga confeitaria Oliveira, conhecia e contava muitas histórias de vida. A Senhora Laura, muito velha, deitava cartas e fazia defumadouros para receber uns dinheiritos. As zangas eram muitas entre vizinhos. Os ciúmes, as invejas, as águas despejadas eram pretextos para insultos. Protagonistas eram duas mulheres, a peixeira, que morava na primeira casa e a Madalena, que morava meia dúzia de casas adiante. Quase diariamente havia espetáculo. E o vocabulário era espectacular. Algumas vezes intervinha a polícia.
Nessa viela morada uma jovem que namoriscava com um trolha que trabalhava na construção do prédio com traseiras para lá. Um dia, estava ele no telhado do prédio, acima do quarto andar, a dar sinais para a moça mas com o entusiasmo desequilibrou-se e caiu dentro duma caixa de saneamento da viela. O jovem conseguiu sair do local, naturalmente com ferimentos, com a ajuda da moça. Provavelmente foi o amor que o protegeu.
Ao meio da rua havia um muro que ocupava uma parte da faixa de rodagem, com uma grande escadaria onde se encontravam várias casas. Na parte de trás dessas escadas existia um grande terreno que era conhecido pela quinta. Era propriedade de um médico da cidade que também era dono de muitas outras casas na rua. Nessa quinta existiam vários barracos onde viviam pessoas idosas, algumas sem família. Havia uma senhora que vivia na companhia de muitos gatos, que tinha o trabalho de angariar alimentos para ela e para eles.
Na cave da primeira casa do muro, que tinha entrada por um grande portão de acesso à quinta, existia um lagar, onde todos os anos o Senhor Bernardino jardineiro, que morava na rua, pisava as uvas da quinta. Havia sempre vinho doce de uvas americanas que era vendido à vizinhança. O Senhor Bernardino deixava as crianças entrar no lagar para participarem na pisa. Era uma alegria.
O Senhor Andrade, vizinho, muito velho, comerciante de mobílias, que parava de vez em quando no tasco para conversar mas não bebia, pai de filhos conhecidos na cidade, um arquitecto, e um médico, contava histórias da sua experiência de vida. Acontecimentos dos fins da monarquia e inícios da república. Através de anúncios nos jornais vendia mais mobílias em casa como usadas, que eram novas, do que as que vendia no estabelecimento.
A oficina do Senhor Costa, sapateiro, era um lugar de tertúlia e de grande discussão política. Algumas vezes fechava a porta da rua para estarem mais à vontade.
O Senhor Costa arranjou emprego numa hidroelétrica, apesar da sua avançada idade. Mudou de casa. O novo inquilino veio de uma rua abaixo. Foi o Senhor Mário barbeiro. Era o organizador das festas de S. João com orquestras de qualidade. Havia disputas entre as organizações das festas na zona, que não eram poucas. Vinham pessoas de muitos lados para dançarem e namorarem. Era uma festa. O Senhor Mário, mais tarde, deixou as barbas e os cabelos e deixou a casa e passou a cobrador do FCP.
Todos os dias, por volta do meio-dia, passavam mulheres que vinham de longe com grandes tabuleiros de madeira carregados com baús que continham as refeições para os operários da fábrica de Salgueiros.
Hoje existe a oficina de bicicletas, sem matrecos, uma garagem, uma drogaria e um hotel.
É uma transformação profunda, na verdade. Mas é também o nascimento de uma nova realidade. É o processo histórico em desenvolvimento.
UM QUADRO "FORA DO SÍTIO"
Mário Martins
Grupo de Figuras Cúbicas – Luca Cambiaso (1527-1585) https://www.pinterest.pt
“Em vez de reproduzir o que os meus olhos vêem, prefiro usar a cor de modo a expressar claramente o meu eu.”
Vincent Van Gogh
"Um artista é alguém que produz coisas de que as pessoas não necessitam, mas que ele - por qualquer razão - acha que seria boa ideia dar-lhes."
Andy Warhol
Parece inquestionável afirmar que a invenção da máquina fotográfica e o processo industrial, lançaram a pintura e a arte para novos caminhos. Não terá sido, certamente, por acaso que o Impressionismo (“pinto o que vejo e não aquilo que os outros se dignam ver”, dizia o jovem Edouard Manet, ou, na apreciação mais irónica de Pierre-Auguste Renoir, “uma manhã, um de nós esgotou a tinta preta; e foi o nascimento do Impressionismo”) e com ele o início da arte subjectiva e da era da modernidade na arte, não terá sido por acaso, dizia, que esta nova maneira de pintar irrompeu nas décadas seguintes ao advento da fotografia, em 1826, quando Joseph Nicéphore Niépce conseguiu retratar, numa placa de estanho coberta de betume da Judeia, o quintal da sua casa na cidade francesa de Chalon-sur-Saône. Os artistas perceberam que não podiam continuar a retratar “realisticamente” paisagens e pessoas, bocados de realidade aparente que a fotografia captava melhor e mais rapidamente.
Contrariando os vaticínios do fim da pintura, os artistas não deixaram, desde então, de nos surpreender e de inaugurar movimentos numa direcção cada vez mais abstracta e cada vez mais difícil de definir. Atente-se, por exemplo, no que dizia, há 40 anos, a pintora nova-iorquina Marcia Hafif: “Em vez de aceitar a simples dualidade habitual entre realismo e abstracção, devemos subdividir a pintura contemporânea em pelo menos quatro categorias diferentes: 1. Representação da natureza; 2. Abstracção a partir da natureza; 3. Abstracção sem referência à natureza; e, finalmente, 4. O tipo de pintura de que tenho vindo a falar – categoria para a qual não existe termo minimamente satisfatório. (…) É não figurativa e não icónica; existe por direito próprio no mundo e não simboliza nem representa nada (a não ser, talvez, “pintura”) (…).
E não raro, os artistas saltam fora do seu tempo, como é o caso do pintor genovês Luca Cambiaso que, em plena Renascença, no meio da sua obra ao estilo do mestre Rafael, de que se evoca este ano o 5º. centenário do seu desaparecimento, desenhou para a posteridade figuras cúbicas como as da imagem acima. Ao consultar um livro de história da arte do século XVI, com as suas pinturas típicas do Renascimento e do Maneirismo, é verdadeiramente estranho depararmos com um desenho como este, que nos dá a impressão de ter sido por erro a sua inclusão no volume de história da arte de quinhentos em vez do volume de história da arte moderna, que irromperia três séculos mais tarde. Como explicar isto?
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