António Mesquita
Passados mais de 20 anos sobre a primeira denúncia do crime ambiental sobre a saúde pública por um agricultor de Parkersburg, West Virginia, Wilbur Tennant, ainda lemos nas instruções das frigideiras e panelas a indicação de que o seu uso é inofensivo para a saúde "por se tratar de material inerte".
Confesso que apenas fui alertado para o problema depois de ver o filme de Todd Haynes "Dark Waters", ("Verdade Envenenada") de 2019.
É tão do outro mundo verificar que algumas coisas que todos fazemos todos os dias, aparentemente anódinas, produtos que somos estimulados a consumir (algumas vezes sem alternativa), mesmo que achemos que em geral a publicidade comercial não é de levar a sério, porque confiamos que existem regras e instituições para as fazer cumprir e, também porque não será do interesse de nenhuma empresa fazer "guerra de extermínio" aos que compram os seus artigos, que o caso reportado neste filme abala os próprios fundamentos da sociedade e a nossa confiança no futuro.
A DuPont de Nemours, um gigante da indústria química norte-americana, que foi processada judicialmente e teve de pagar 670 milhões de dólares a algumas das suas vítimas, por acção de um intrépido advogado, Rob Bilott, continua, pois, com conhecimento de causa, a fornecer as cozinhas de todo o mundo com o PFOA-C8 (*), conhecido por Teflon e seus derivados, um anti-aderente que impede que os alimentos se peguem às nossas frigideiras e panelas, sem ser molestada pelos serviços governamentais ou pelas autoridades da saúde pública.
É preciso encontrar uma nova metáfora para esta invisibilidade do mal porque as indemnizações que esta empresa química teve de pagar abrangeram apenas uma pequeníssima parte das suas presumíveis vítimas. A complexidade do estudo (demorou alguns anos a análise das amostras de sangue recolhidas, no final dos anos noventa, a cerca de 60 mil dadores aliciados por um prémio, graças aos esforços de Bilott) não seria um problema para o Estado que evidentemente dispõe de outros meios que não estão ao alcance dum particular. Como se explica esta inacção dos poderes públicos?
Como era se supor, a DuPont tentou alterar a sua fórmula para responder às críticas, mas nada de relevante, afinal. Continuam por fazer testes mais extensivos quanto aos danos do Teflon e por provar que as "correcções" da empresa resolveram o problema.
Um filme é decerto alguma coisa e, se for suficientemente divulgado, esta impunidade talvez não seja por muito tempo. Mas que o bilião de lucros anuais da corporação não tenha sido afectado e que se continuem a vender esses utensílios por todo o mundo e a propalar mentiras sobre as consequências para a saúde do anti-aderente deixa-nos perplexos sobre a vulnerabilidade da democracia ao ignorar por tanto tempo as evidências.
Sobre o filme proprianente dito, é claro que o objectivo de denunciar o crime e o "complot" dum gigante da química para evitar que os seus lucros sejam beliscados, transcende a necessidade da arte cinematográfica. Não fosse esse o primeiro motivo, poderíamos desejar que a história fosse menos didáctica e que revelasse outros meandros da psicologia de grupo, por exemplo. Mas em nada essa consideração diminui, como é óbvio a urgência da mensagem cívica. E até poderíamos louvar a Todd Haynes e a sua equipa terem sabido evitar o tom panfletário.
(*) "Dos compostos libertados pelo Teflon, existem:
- PFOS (ácido perfluoro-octanossulfônico): 14 gases e partículas, tóxicos ou cancerígenos, dos quais destacam-se pela extrema toxicidade:
- PFIB (perfluoroisobuteno), agente de guerra química 10 vezes mais tóxico do que o fosgênio utilizado na 1ª e 2ª Guerra Mundial;
- COF2 (fluoreto de carbonila) análogo ao flúor fosgênio;
- AMF ou MFA (monofluoroacetate) gás mortal mesmo em doses baixas;
- HF (ácido fluorídrico) gás altamente corrosivo;
- TFE (tetrafluoretileno) carcinogénico.
- PFOA (ácido perfluoro-octanoico)– toxina que acarreta problemas no fígado, sistema imunológico, defeitos de nascença e potencial carcinogénico. É libertado caso tenha sido usado na fabricação do revestimento teflon. Todavia caso não tenha sido usado, os seus substitutos como GenX também têm historial igualmente tóxico."
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