01/12/19
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
Outubro. Soube sempre que nos haveríamos de voltar a encontrar. Era uma certeza que advinha da minha vontade e da ideia que construí ao longo dos anos de que o nosso reencontro seria inevitável. Como poderia não encontrar a pessoa que tantos ensinamentos me deixara. Quando as unidades de elite do Exército Árabe Sírio transportadas por helicópteros russos se deslocaram para Al-Qamishli, não hesitei um momento e segui viagem para a pequena cidade onde te poderia reviver. Tudo está agora muito diferente daquele tempo que um acaso nos fez cruzar os nossos destinos. Tinha atravessado o deserto e pretendia seguir para a Báctria. Tu vinhas da Pérsia pelo Lago Van e atravessaste as montanhas curdas, mas sem destino planeado. Talvez por isso, ficaste vários dias neste lugar próximo da fronteira turca e essa foi a casualidade que fez coincidir os nossos dias em Al-Qamishli. Ao segundo dia, já me levavas pela estrada do aeroporto, não o de hoje, mas aquela pequena pista de areia que se estendia plana. Seguia-te com naturalidade. Atrás das tuas palavras, os meus passos seguiam os teus. Levavas-me a espreitar o deserto, ao fim da tarde quando o sol declinava para os lados de Alepo. Tudo em ti era beleza, dos pensamentos às reflexões, as leituras que fazias da vida, dos acontecimentos, das acções humanas, com a serenidade de quem sabia o que estava para acontecer. Ensinaste-me a escutar o som do silêncio na brisa que arrastava a areia quase de forma imperceptível. E na melodia que se desenhava as tuas palavras tranquilas mostravam-me os factos que se acumulavam na Europa como nuvens negras anunciadoras da tempestade que desabaria sobre a humanidade. Como tinhas razão, como eram tão claros os sinais. Que pena teres morrido dez anos antes de eu nascer. Agora quando volto a percorrer a estrada que dia após dia nos levava até ao deserto, eu embebido pela tua sabedoria e cultura, tu com o desejo de falar com a ideia que alguém te pudesse escutar e conseguisse travar a loucura que vias como um adamastor, e ao lembrar o que então dizias, vejo de novo os mesmos vestígios, os mesmos rastos, a mesma intolerância, os fachos voltam a acender-se pela Europa, as hordas marcham de novo com os seus cânticos, a sua violência, a sua ameaça de mergulhar na escuridão a vida dos povos, e de novo, a complacência dos poderes constituídos, da ordem estabelecida, do sistema instalado. Encerro os olhos e nem a música trazida pelas areias em viagem acalmam o meu temor e a desilusão estende-se infindável na noite que chega.
Novembro. Era uma noite de tempestade. Via a brancura da neve a cair com intensidade na janela que estava atrás de ti. Não te apercebias. O teu rosto tenso relatava com amargura aqueles dias da década de sessenta, dias de combate pela liberdade, pela dignidade, pela justiça. As lágrimas correram pelas tuas faces quando com uma tristeza arrasadora relatavas como os mineiros resistiam nas ruas de El Alto ao avanço dos canalhas montados nos seus carros de combate. «os mineiros deitaram-se no chão para deter a marcha daquela horda, mas continuaram como se os homens fossem bonecos e os mortos acumularam-se após a sua passagem», dizias tu numa comoção sufocada enquanto os teus dedos entrelaçavam um fio imaginário. Tantos anos depois, Eliana, recordo o teu rosto indígena, o teu relato. Não sei onde estarás ou se ainda existes, mas em El Alto, de novo, os bolivianos ocupam as ruas, barram o caminho à bestialidade dos biltres que de novo assumiram o poder, como só eles sabem fazer, pela infâmia, manipulação e violência. A história repete-se, com os seus rios de sangue, os seus cemitérios inundados. De novo voltam a morrer os pobres e os marginalizados enquanto à volta o sistema garante que tudo vai bem.
Michele Bachelet foi por duas vezes presidente do Chile. Em ambos os mandatos, não foi capaz de honrar verdadeiramente, nem a memória do seu pai – brigadeiro-general Alberto Bachelet, preso, torturado e morto pelos energúmenos sediciosos que acompanharam o monte de esterco humano que deu pelo nome de Augusto Pinochet -, nem a do Partido Socialista de Salvador Allende. Em ambos os mandatos, governou com a Constituição deixada pelo ditador e que agora o povo chileno exigiu na rua o seu fim. Como Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, soube falar grosso quando se tratou da Venezuela, mas rastejou quando teve de falar sobre o Chile, a Bolívia, o Equador e até mesmo da Índia a propósito de Cachemira.
A cada vinte anos, a elite que domina o poder, económico, financeiro e político dos EUA monta um carnaval com a intenção de destituir o presidente de turno. É uma espécie de ópera bufa em que os actores são acusados e acusadores e transmitem o espectáculo pela televisão para a plateia assistir. Quando termina a peça, continua tudo na mesma com os mandantes de sempre. Chama-se a isto, democracia e há gente muito respeitável que tece grandes comentários e bate palmas.
A América Latina pariu o segundo presidente auto-proclamado. A rapariga, Jeanine Áñez de sua graça, não teve mãos a medir. Começou por se auto-proclamar presidente do Senado e acto contínuo, presidente da república. O que se estranha é que o inefável Augusto Santos Silva não tenha dado acordo de si a reconhecer de imediato a personagem.
CRONICANDO
Manuel Joaquim
A convite do Tenente-General Vice-Chefe do Estado Maior do Exército, do Major-General da Direcção de História Militar e do Coronel Director do Museu Militar do Porto, realizou-se uma conferência no Museu Militar, no passado dia 25 de Novembro, sobre o tema “O Norte e o 25 de Novembro” que teve o Doutor Adriano da Fonseca Rodrigues e o Coronel José Manuel da Glória Belchior como oradores. O local estava cheio de assistentes, a maior parte militares e ex-militares, muitos das associações de combatentes e de ex-comandos.
A visão muito parcial e deturpada dos acontecimentos, os manifestos preconceitos ideológicos levam-me a constatar que continua a existir uma forte presença de grupos sociais arreigados a valores do antes do 25 de Abril e que exercem influências muito grandes a muitos níveis da sociedade, na comunicação social e nos diversos órgãos de soberania.
O Presidente da República tem às suas ordens e ao seu lado toda a comunicação social. A toda a hora entra nas casas das pessoas falando de tudo. É ele que vem dizer que vai ser preciso meter mais mil milhões no novo banco, que vai ser preciso apoiar a comunicação social, que o orçamento de Estado é positivo e que o salário mínimo aprovado pelo governo está bem. Hoje foi mostrado no Pingo Doce, a escolher esparguete italiano e a mostrar que gastou oitenta e tal euros nas compras para a campanha de recolha de bens alimentares, dizendo que queria factura com o número de contribuinte se não era notícia para o Correio da Manhã. Não sei que papel de muleta ele faz para o governo, se negra, se de outra cor. O Rangel, que esteve na televisão, um dia disse que era capaz de fazer um presidente de um toco de vassoura. O antigo fazedor de factos políticos já o é.
No mesmo caminho vai um partido político que já existe há cerca de seis anos mas que praticamente ninguém deu pela sua existência durante esse tempo. Agora, primeiras páginas de jornais e prime-time das televisões, comentadores de todos os cantos, aparecem a fazer comentários sobre a deputada desse partido na Assembleia da República. Nas entrelinhas da escrita e das palavras denotam-se preconceitos doentios que pretendem condicionar a opinião pública, justificando o afastamento de quem lhes serviu de pau-de-cabeleira, para aparecerem na ribalta os seus verdadeiros mentores, pessoas importantes da área do poder político e não só, e o próprio partido.
Questões fundamentais para os portugueses não são dadas a conhecer. Na 3ª Comissão da ONU, 121 países aprovaram a moção “Combatendo a glorificação do nazismo, do neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar as formas actuais de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada”. Votaram contra EUA e Ucrânia. Os países da EU, incluindo Portugal, abstiveram-se. O ministro da Defesa anuncia um aumento muito significativo de investimento em equipamento militar ao longo dos próximos anos. A nível do governo há desacatos por não haver dinheiro para a saúde, educação, salários, etc., mas para os militares e Nato não se discute, gasta-se.
A personagem, que dá por ministro, que mandou militares armados para a Venezuela para depor o governo de lá, ainda não disse nada sobre a Bolívia, a Colômbia, o Chile. Certamente ainda não recebeu instruções externas para o fazer.
Há políticos que se deixam embebedar pelo poder e pelos círculos que frequentam. Desconhecem as realidades que muitas das vezes não coincidem com os seus desejos. A roda da História trituram-nos. Arrastam sociedades inteiras para o desastre como aconteceu no século passado. Esperemos que não venha a acontecer nos próximos tempos.
A IDEIA DA INSPIRAÇÃO
António Mesquita
"Nada é mais difícil de entrar no espírito das pessoas, e mesmo no da crítica, do que esta incompetência do autor a respeito da sua obra, uma vez produzida."
(Paul Valéry in "Introduction à la méthode de Léonard de Vinci")
Numa entrevista de há dois anos, José Mário Branco dava expressão a esta ideia, quando dizia que as suas criações passavam através dele, como se fosse o cosmos o verdadeiro autor e que, uma vez produzidas, não lhe pertenciam e ele não poderia impedir que se transformassem em qualquer outra coisa à sua revelia. As suas canções do "processo revolucionário em curso" poderiam até tornar-se num hino nazi...
A opinião de que um autor é a maior autoridade sobre a sua obra, que é o único responsável pelas ideias que lhe ocorrem e pelo seu desenvolvimento e conclusão é cativa, de facto, duma ideologia que poderíamos chamar de individualismo vulgar.
É a mesma distorção que está presente na concepção do homem como, por essência, político. Como diz Hannah Arendt: "(...) Simplesmente, não é assim: o 'homem' é apolítico. A política emerge 'entre homens', e, portanto, claramente no 'exterior do homem'. Não há, portanto, substância política real." ("A Condição Humana")
É na pluralidade, em sociedade, com todas as modalidades do tempo, que a política faz sentido. Não é concebível no indivíduo isolado.
Também a criação literária e artística não é real como produto de um 'criador' enquanto indivíduo. Essa produção é inconcebível sem a linguagem e os símbolos que não lhe pertencem, que emergem num mundo que ultrapassa a duração do indivíduo e entre espíritos de todos os tempos. Recorrer à ideia de inspiração, é isso que quer dizer, não é verdade?
Mesmo no caso dum artista que ostensivamente rompe com a tradição, é óbvio que sem essa tradição não lhe seria possível sequer pensar a ruptura. É o que diz Arendt a propósito daqueles que decidem ignorar a tradição sem poder escapar-lhe.
Tudo isto releva da questão do sujeito no pensamento ocidental, desde Platão. Somos deuses como pretendem alguns laicos na esteira do antigo paganismo? Somos, para além de qualquer possibilidade de demonstração, encarnações do Cosmos?
Seja como for, as ambiguidades da nossa natureza e do nosso destino são-nos essenciais. Se pensarmos que o discurso racional é o que nos distingue e o nosso principal atributo, devemos atentar nas palavras de Paul Valéry: "Não há, certamente, nada em si mais mórbido, nada de mais inimigo da natureza, do "que ver as coisas como elas são." Uma clareza fria e perfeita é um veneno impossível de combater."
É preciso um poeta lembrar-nos de que existem males racionais. Basta perder-se o sentido da proporção e da beleza para incorrermos nas maiores calamidades.
É esse sentido, afinal de contas, que impede o verdadeiro autor de reivindicar o pleno domínio da sua obra, como qualquer artesão o pode fazer do artefacto que sai das suas mãos.
PERIGO À VISTA
Mário Martins
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“Daqui a oito anos seremos o maior partido de Portugal”
André Ventura, líder do Chega
No jornal Expresso de 19 de Outubro passado, Francisco Louçã aconselhava que não se leve a sério o novel deputado André Ventura, líder do partido “Chega”, antes o tratemos como, há muitos anos, a poetisa Natália Correia tratou o colega parlamentar João Morgado, ridicularizando com o célebre poema do “truca-truca”* a sua posição de defesa das relações sexuais exclusivamente para fins de procriação, no quadro da discussão do aborto. A ideia, compreensível, de Louçã, é não fazer o jogo do “emproado carreirista”, dando-lhe importância e publicidade desproporcionadas.
No entanto, se Morgado estava sozinho na sua peregrina cruzada, não é o caso de Ventura, que, em entrevista ao jornal Público, apesar de negar ter recebido financiamento de movimentos ligados a Steve Bannon (ideólogo populista americano) ou a Jair Bolsonaro, reconhece ligações a partidos populistas, se não de extrema-direita, como o espanhol Vox, que recentemente teve uma espectacular subida eleitoral, a Liga italiana e os partidos dos governos “musculados” dos países do Grupo de Visegrado, como a Hungria e a Polónia. E o seu discurso “anti-sistema” fará as delícias dos órgãos de comunicação, sempre ávidos de novidade e escândalo, a bem do negócio. Ventura sabe que quanto mais básico, radical e escandaloso for, maior publicidade e “alertas CM” terá.
O populismo, entretanto, está a ser estudado. Duas semanas antes da edição do jornal Expresso, em que Louçã dava a táctica política para lidar com Ventura, podíamos ler, na revista do mesmo jornal, um excelente artigo sobre o populismo, da autoria de Lourenço Pereira Coutinho, doutorado em História Institucional e Política Contemporânea. Nele, define-se que “populismo e populista são conceitos que partilham uma retórica demagógica, uma visão maniqueísta da sociedade, uma lógica de confronto e, sobretudo, o apelo directo às massas”. Não custa imaginar que Ventura, que ambicionará ser o Salvini português, e o Chega vão seguir esta receita para tentarem atingir o objectivo proclamado de serem o maior partido em duas legislaturas. Para já, e visando seduzir o eleitorado moderado, Ventura diz, na entrevista ao jornal Público, que não gosta de ser intitulado de extrema-direita e afirma defender a democracia liberal.
A ascensão deste partido populista só poderá ser travada de duas maneiras: com uma governação que transmita o sentimento de resolução dos problemas e de diminuição da corrupção e das injustiças, e com uma recuperação da direita institucional. Sobretudo se esta última falhar, o Chega estará nas suas “sete quintas”.
Ventura não aparenta ter convicções políticas sinceras, mas, se as tiver, tanto pior. Salazar foi, indubitavelmente, um político de convicções…
*Truca-Truca
Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão – diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.
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