Marques da Silva
Hoje escrevo-te uma carta, pois só contigo consigo lembrar a beleza, desfrutar o silêncio, dominar o temor que é o medo. Não é pânico, nem desalento, apenas esse receio do que sabemos ir acontecer. Estamos parados em Charikar. Já nos imobilizamos há demasiado tempo, como se o passar das horas eliminasse o receio que todos sentimos. Os quilómetros que percorremos desde a capital, foram um passeio, comparado com o que nos aguarda. A alegria superficial que todos sentíamos, traduzia-se em risos sem nexo, gracejos sem propósito e estórias sem valor. A estrada é plana, os campos apresentam uma grande tonalidade de verde em contraste com o amarelo nu das montanhas e a pedra rude das encostas. Sentimos uma sensação de paz e até a miséria destes povos nos aparece como natural, aceitável e nunca nos habituaremos aos sorrisos que nos oferecem de passagem, por que, até nesse acto de bondade queremos adivinhar uma suspeita de maldade. Aqui chegados, estes monstros de forte blindagem e rodados de grande diâmetro, detêm a marcha. Nunca questionamos o porquê desta paragem sem significado, mas todos sabemos que nos preparamos para enfrentar o medo que nunca saberemos onde se oculta. É esse o segredo de todas as guerras. O medo do inimigo, do opositor, do outro que nos combate. Antes de se apresentar à nossa frente, visível, com rosto, nasce no interior de nós próprios, cobre-nos a alma, prepara-nos para uma batalha que pode até não ocorrer. Mas se acontece, já estamos animicamente preparados para uma dose suficiente de violência desregrada. A vontade de viver, sobrepõe-se à razão e faz desencadear níveis de vingança contra alguém que nunca vimos, que não conhecemos e nem sequer pensamos no que move esses outros seres que estão simplesmente do outro lado. Tão pouco, reflectimos sobre o que fazemos em território alheio. Esta longa paragem, na berma da estrada nas imediações do povoado, tem o intuito de nos preparar. Todos sabemos que os olhos se vão abrir quando os carros se movimentarem. Escondidos por trás da grossa blindagem, acreditamos estar protegidos, pois temos necessidade de acreditar em alguma coisa, em algo que nos faça pensar que venceremos o silêncio de Salang. As horas passam e as palavras vão rareando, as frases surgem mais curtas com longos intervalos a separá-las. Todos sabemos que cada um se recolhe nas suas memórias, nas suas lembranças, pensando que, «se sair desta, regresso a casa e esqueço tudo isto para sempre». Tento pensar nos momentos bonitos, nos dias felizes, procuro no arquivo memorial, os instantes que vivemos juntos, faço por acreditar que voltaremos ao deserto levantino e atravessaremos Palmira de mãos dadas. Lembras-te do som melodioso da areia quando nos sentamos ao fim da tarde ao Sul de Alepo? Tento que esse canto, pleno de serenidade, tranquilo como uma brisa, chegue até mim. Levanto os olhos e através do óculo lateral detenho-me nos picos nevosos que me trazem a lembrança do Demavand onde te fui procurar quando te isolaste do mundo, tentando encontrar uma razão que explicasse o porquê de tanta maldade, de tanta ganância quando a natureza nos presenteia com paisagens que nos deixam sem fôlego pela naturalidade da sua beleza, na grandeza do indescritível. E de certa forma, também prometo, «se sair desta…», levar-te-ei de novo às montanhas azuis, estas que em breve se apresentarão perante mim, como se cobrissem a estrada. Quero ver o reflexo dos teus olhos a navegar nas planícies do sonho. Mas nenhum destes pensamentos é suficiente para esquecer o medo. Decido então escrever-te. As palavras escritas não se apagam, persistem no papel onde as deixamos e enquanto desenhamos letra a letra, há um apaziguamento que se instala, se interioriza e nos faz pensar que estamos num outro lugar da terra e que o que se vai passar a seguir é apenas um sonho mau que nos perturba a noite. Vou escrever até que o ruído dos motores nos indique que o nosso tempo acabou e as palavras, sejam quais forem, perderão sentido. Prevalecerá a acção do irrazoável e ver-nos-emos a realizar acções que imaginávamos não ser capazes de fazer. Em que parte de nós se escondia esta violência, este ímpeto de imoralidade que nos faz agir descontroladamente? Alguns desculpam-se com a necessidade de sobreviver, esse acto humano que nos acompanha há milénios. É o tempo de esquecer os beijos que trocamos, as mãos que fundimos como se fôssemos um ser único e varro da memória a palavra amor por não fazer qualquer sentido num cenário de cemitério que vamos atravessar. O movimento recomeçou e a N76 entra num desfiladeiro apertado onde só sobra espaço para a sua largura e para o rio que abaixo corre imparável. O degelo primaveril torna o seu caudal desvairado, arrastando o que se encontra nas suas margens, apertadas entre o colosso montanhoso. Pequenas aldeias sucedem-se. Vejo as casas construídas na pedra barrenta, em cascata, carentes de tudo e as gentes deambulando numa aparência sem razão. As árvores não crescem e parecem apenas arbustos grandes. Tento que os olhos se detenham no azul celeste, mas na verdade envio-os como espiões até aos seus cumes nessa tentativa vã de descobrir os que nos vigiam. Já ninguém fala, apenas se escuta o esforço dos motores. Atravessamos Mullāmar e sentimos que os dedos se crispam no metal das armas que repousam caladas entre as mãos. Iniciamos a subida para a travessia do túnel de Salang e enquanto nos aproximamos dos cumes oestes do Hindu Kush, afastamo-nos do leito do Darah ye Haft Tanār a que chamamos carinhosamente apenas Darah. Estamos prestes a alcançar os 3350 mts e a rudeza das montanhas aparece coberta dessa brancura gélida de neve que só em pleno Verão se vai derreter. Num tempo de paz, quando ambos passamos esta cordilheira e contemplamos esta natureza milenária, eu dizia belo e tu pronunciavas lindo, e as duas palavras fundiam-se em beleza e faziam descobrir a ternura que se escondia nas nossas almas e se moldavam em nós como a era no tronco das árvores. A entrada aparece-nos como um mergulho na noite, no vazio e o silêncio que nos envolve adquire outra dimensão, como se saltássemos para um abismo. As luzes apagam-se e o único ruído vem do andamento dos carros, mas não ouço, até mim já não chega qualquer som. Tento pensar, tento responder a perguntas tão simples como, o que faço aqui? Onde estou? E só me ocorre o poema de Mário Sá-Carneiro, “Quando eu morrer batam em latas…”. Os três quilómetros do túnel são os mais longos da viagem. Estremecemos, a ansiedade quase nos esgota, o mutismo que nos rodeia deixa-nos no limite da sustentabilidade do possível. Procuro acreditar no impossível, no irreal, em sonhos passados. Sabemos o que nos aguarda, mas prefiro pensar que do outro lado, estarás tu a esperar-me, como outrora me esperavas nas madrugadas sem sono. Que será o teu rosto onde vive um sorriso infindável que me vai acenar, como um chamamento, um apelo, um convite à alegria. A luz do dia aparece no horizonte visual. Arrepio-me e num último alento soletro as palavras de Sophia, “Pelas tuas mãos medi o mundo / E na balança pura dos teus / ombros / Pesei o oiro do sol e a palidez / da lua”. De seguida tudo se apaga. A minha carta termina aqui, já não pode prosseguir. Fica só a profundidade deste silêncio a envolver-nos no caminho. Nem um canto, nem um som, nem um simples toque. O silêncio vivido em Salang é como os amores perdidos. Continuamos, mas já não somos os mesmos.
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Nunca compreendi como uma monarquia pode ser uma democracia, como um Estado que possui órgãos de poder hereditários e não sujeitos a escolhas eleitorais pode ser uma democracia. O Estado espanhol além de uma monarquia, tem políticos exilados pela defesa das suas ideias e pelos seus actos políticos consonantes com o seu programa eleitoral. Pelas mesmas razões tem presos políticos sem condenação há mais de ano e meio. Tem ainda, este Estado, uma lei que restringe as liberdades e a expressão do pensamento, que os seus cidadãos apelidaram da «Lei da Mordaça». Pois apesar disto tudo, o Estado espanhol não só vive um regime democrático como está cotado entre as melhores democracias! Talvez por não entender estas coisas é que a minha inteligência nunca passou da mediania.
Uma das acusações que fazem ao malandro do Maduro, o «usurpador» como lhe chama esse vómito humano que dá pelo nome de Juan Guaidó, o preferido de Augusto Santos Silva, é de ter sido eleito com a participação de apenas 46% do eleitorado. Deveria ter seguido o exemplo de Macron, eleito com a participação de 41% do eleitorado, ou dos deputados portugueses ao Parlamento Europeu eleitos com a participação de 31% do eleitorado. Isto sim, é legitimidade. É por estas razões que na Europa só há democracias e na Venezuela há uma «ditadura».
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