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01/06/19

PARTICIPAÇÃO E LEGITIMIDADE

António Mesquita


"Luhmann expressamente classifica o emparelhamento das "ideias gémeas" de legitimação e participação de "desastre", e afirma que qualquer tentativa de ligar a legitimidade à participação dos cidadãos conduz necessariamente a uma sobrecarga burocrática do estado."


("Niklas Luhmann's Theory of Law and Politics" de Michael King e Chris Thornhill)



Depois das últimas eleições europeias e, entre nós, da massiva abstenção, de parecer, em alguns casos, que o radicalismo de direita se mostrou o mais motivado para votar, a tese de Niklas Luhmann é uma ideia ao mesmo tempo provocante e tranquilizadora, porquanto dela se pode deduzir que os regimes não são mais legítimos por serem mais votados e "participados".

Atente-se, além disso, que no mundo global das comunicações, o impacto de certas opiniões (podem tratar-se de meras superstições ou preconceitos) sobre as decisões dos governos e actores políticos e, no final de contas, sobre a vida das pessoas, põe em causa a própria noção de "representatividade", a qual deixa de se referir ao universo dos cidadãos sujeitos de uma vontade, para se medir pelas contingências da comunicação social e pelos "likes" das redes digitais, ou pelo seu efeito sobre a ecologia dum pressuposto consenso. 

A ideia de sistema, na sociologia de Luhmann, inspira-se na autonomia dos seres vivos e na sua auto-reprodução ("autopoiesis"*), nas suas trocas com os outros sistemas e o meio ambiente, sempre em função da sua forma "orgânica" e da sua estrutura interna. 

As implicações do conceito são, se é possível, ainda mais importantes numa sociedade em que predominam os sistemas de comunicação. Dizer isto é, entre outras coisas, pôr em causa a ideia de uma "sobredeterminação em última instância" da economia. O que nos mostra a realidade de todos os dias é, de facto, quer nos movimentos sociais recentes, como é o caso dos 'Coletes Amarelos', em França, quer no das ideias em voga como a da 'Mudança Climática', é que os sistemas de comunicação têm regras que tanto a razão como a economia desconhecem. 

Condicionar a legitimidade do regime político a uma efectiva participação dos cidadãos seria, no limite, estender a política a todas as formas de vida social e de algum modo esbater as diferenças com o meio ambiente do sistema. Por detrás de tal ideia está a crença na possibilidade do estado assegurar a permanência do "entusiasmo cívico" (que, geralmente, se verifica nos períodos revolucionários) e que a legitimação de um regime depende dessa condição excepcional. Como tal não é possível dada a natureza humana, a "participação" não seria mais do que uma função a juntar às outras do aparelho estatal. 

Ora, é evidente que a legitimidade não se pode compreender senão à luz da história e do passado dos povos. É óbvio que os "regimes legítimos" não nasceram com a democracia do século XX.

Como dizem os autores, interpretando o pensamento de Luhmann, "as instituições que descuram a resposta ao seu meio ambiente e que privilegiam um contra-intuitivo 'apego a expectativas normativas', tendem sempre para 'obstruir possibilidades de aprendizagem' e, em última análise, para minarem a sua própria legitimidade." Isto é, a política e a moral prejudicam o funcionamento do sistema se forem mais do que "auto-descrições", maneiras do sistema se ver a si próprio, impedindo a autonomia das operações sistémicas, a sua evolução e adaptação. 

Já Marx lhes chamava "superestruturas", condicionando essas formas à infraestrutura do "modo de produção". Bem vistas as coisas, o que Luhmann acaba por dizer é que a "superestrutura» (por exemplo, a participação efectiva dos cidadãos para lá de um certo limite) tornaria o "modo de produção" inviável. 

Era caso para arriscar dizer que talvez nos encontrássemos, sem nos darmos conta, numa situação pré-revolucionária, não fora a tendência revelada pelas eleições de 26 de Maio.




*Autopoiese ou autopoiesis (do grego auto "próprio", poiesis "criação") é um termo criado na década de 1970 pelos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana para designar a capacidade dos seres vivos de se produzirem a si próprios. Segundo esta teoria, um ser vivo é um sistema autopoiético, caracterizado como uma rede fechada de produções moleculares (processos) em que as moléculas produzidas geram com suas interações a mesma rede de moléculas que as produziu. A conservação da autopoiese e da adaptação de um ser vivo ao seu meio são condições sistémicas para a vida. Portanto, um sistema vivo, como sistema autónomo está constantemente se autoproduzindo, autorregulando, e sempre mantendo interacções com o meio, onde este apenas desencadeia no ser vivo mudanças determinadas em sua própria estrutura, e não por um agente externo. De origem biológica, o termo passou a ser usado em outras áreas por Steven Rose na neurobiologia, por Niklas Luhmann na sociologia, por Gilles Deleuze e Antonio Negri na filosofia, por Patrick Schumacher na arquitetura e por Gunther Teubner no Direito. (Wikipedia)

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