Mário Martins
https://www.fnac.pt/A-Estranha-Ordem-das-Coisas-
“Quando um organismo vivo se comporta de modo inteligente e eficaz no seu respectivo ambiente, partimos do pressuposto de que esse comportamento resultou de previsão, de deliberação, de uma grande complexidade funcional, todos com a ajuda de um sistema nervoso. Não obstante, é agora bem claro que tais comportamentos podem também ter origem no equipamento modesto de um organismo unicelular, de uma bactéria na alvorada da biosfera.”
António Damásio
“A Estranha Ordem das Coisas”
Vinte e três anos depois da publicação do seu premiado livro “O Erro de Descartes”, no qual inverte a famosa afirmação cartesiana (em vez de “Penso logo existo”, Existo logo penso), Damásio está de volta para reiterar e desenvolver a noção de que “não só a mente tem de passar de um cogitum não físico para o domínio do tecido biológico, como deve também ser relacionada com todo o organismo que possui cérebro e corpo integrados e que se encontra plenamente interactivo com um meio ambiente físico e social”.
Em “A Estranha Ordem das Coisas” Damásio releva o imperativo natural da homeostasia, expresso por sentimentos, de acordo com o qual cada organismo vivo sobrevive e evolui enquanto espécie, fenómeno que designamos, correntemente, por instinto de sobrevivência.
E destaca o papel motor dos sentimentos: “O intelecto humano excepcional, quer individual quer social, não seria levado a inventar práticas e instrumentos culturais inteligentes sem uma justificação potente. Qualquer tipo de sentimento ou sensação, causados por acontecimentos reais ou imaginários, serviria de motivos e mobilizaria o intelecto (…) A actividade cultural (que inclui as artes, o inquérito filosófico, os sistemas morais e as crenças religiosas, a justiça, os sistemas governativos e as instituições económicas, e a tecnologia e a ciência) teve início nos sentimentos e deles continua a depender. Se quisermos compreender os conflitos e as contradições da condição humana, precisamos de reconhecer a interacção, tanto favorável como desfavorável, entre sentimentos e raciocínio.”
Por outro lado, para Damásio o funcionamento da mente implica “uma estreita interacção bidireccional entre os sistemas nervosos e as estruturas não-nervosas dos organismos (…), os sentimentos não são uma fabricação independente do cérebro; eles resultam de uma colaboração entre corpo e cérebro, os quais interagem graças a moléculas químicas e vias nervosas (…) os cérebros e os corpos são ingredientes da mesma sopa que permite a mente.” Ou seja, dito de forma coloquial, não pensamos só com a cabeça. Por isso, considera que o dualismo corpo e cérebro “ferozmente explorado pelas ciências informáticas, é uma posição que o tempo vai abandonar impiedosamente.”
A inversão do postulado cartesiano que Damásio opera em contexto científico lembra, irresistivelmente, a famosa inversão, no plano filosófico, oposta por Marx a Hegel (“Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência”), todavia com uma diferença importante: como cientista que está ciente da permanente “ameaça” de novos dados e novas interpretações ao conhecimento estabelecido, Damásio reconhece que “tendo em conta as imensas novas e poderosas descobertas científicas, é fácil ceder à tentação de acreditar em certezas e interpretações prematuras que o tempo se encarregará de rejeitar impiedosamente. Estou preparado para defender a minha actual visão sobre a biologia dos sentimentos, da consciência e das raízes da mente cultural, mas não tenho ilusões sobre a durabilidade dessa visão”. Como alguém disse, a verdade é impermanente…
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