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01/03/18

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva

(Palmyra)


Já só as palavras me ligavam ao mundo, firmavam esse elo que me prendia à humanidade, às ideias e pensamento do todo que compõe este colectivo em que acreditava viver. Mas também elas se diluíram na poeira do tempo, nessa cupidez humana que nos devora insaciável sem intenção de poupar quem quer que seja. Deus ou o rebanho, todos são convocados para o seu altar sacrificial, deixando-nos nesse isolamento onde nem os sons sobrevivem. Fizemos juntos a estrada de Damasco, até aqui a estas ruínas passadas, até este clamor que teima em não perecer no meio das areias desérticas. Já não vimos o arco de triunfo, da glória de Septimio Severo. A história no seu desbravar da memória, renasce séculos depois, com a mesma violência ávida de destruição. Cómodo vindimado pelas armas, como tantos senhores da Roma imperial e tu, Septimio, na ânsia de alcançares o poder, a abrires caminho com a folha da espada, sem te poupares a quantos mortos iam ficando na tua senda, como a família de Clodio Albino, lançada ao Ródano, depois de torturada. Foram estas façanhas que te induziram à celebração do arco que se erguia em Palmira, até à chegada dos novos bárbaros sem lei. Derrubaram-no pela blasfémia que representava, como se os seus valores pudessem oferecer mais do que gargantas degoladas. Que tempo este que nos é dado viver! Olhamos longamente o vazio que saltava do amontoado de pedras, no sossego retemperador de uma tarde que não terminava. Era como se a história morresse duas vezes. Foi então que nos separamos. Seguiste para Norte em direcção a Alepo e eu prossegui para Leste a caminho de Deir ez-Zor. Via o mundo através dos teus olhos e compreendia o tempo com as palavras que saíam dos teus lábios como beijos sedentos de água. Deixaste-me assim desamparado nas terras do Levante e já não te pude dizer que Deir significa mosteiro em árabe e Zor é nome de arbusto marginal ao rio, ao Eufrates que a visita a caminho do Pérsico. Contigo, aprendi a amar os jardins de rosas da invencível Jalalabad e vi ainda as cortinas esvoaçando serenamente ao vento pelas janelas abertas dos palácios de Pasárgada protegendo o túmulo de Ciro. Depois de ti, deixou-me a mais bela rainha do Egipto que me ensinara com o seu olhar balsâmico a viver com o conselho de Almada Negreiros de “chegar a cada instante como a primeira vez”. Agora, caminho desprotegido para Leste em direcção à cidade mártir de Deir. Três anos cercada, resistindo ao assalto dos covardes que se escondem atrás de Deus, para saquearem a vida e maltratarem a fé, até à chegada do Exército Árabe Sírio. Das suas ruínas já não nasce o som dos sinos dos cenóbios e é uma voz cansada que harmoniosamente chama à oração. Os arbustos sobrevivem exaustos. Desce um silêncio profundo no caminho que me leva e sinto a música que lhe dá forma. Chega mansa, ondulante, soprando um canto melodioso que penetra nos ouvidos como a água corrente. Na minha pátria encontramos o infinito na contemplação do mar, mas nesta estrada não há oceano, pelo que o infinito se transforma em eternidade, o destino da minha viagem.


Que pena não teres vindo hoje à tarde! Vestiram o Outono de Primavera e aqueceram o sol. As chamas devoram a vida que encontram na sua passagem, altas, bravias, indomáveis. Passei o dia a desenhar o jardim para quando chegasses. Fiz rios, lagos e barcos à vela. Naquele canto, naquele esupaço onde te sentavas escutando os murmúrios do dia a declinar, ergui um baloiço para à noite vermos as galáxias. A de Andrómeda que é a nossa preferida. Talvez as possamos ver a correr pelo universo. Sobre um papel escrevo um mapa só com estradas que me possam dizer onde te encontras. Com os olhos enevoados pelo sonho, construí uma recta com montanhas no fim, mas era tão longa que saiu do papel e acabei por me perder. Agora já é tarde e vieram buscar o sol, apesar da resistência da estrela em fechar a sua luz. Escondem-na de mim para me escurecerem a noite e eu de novo me perder como quando a estrada onde te procurava saiu do papel. Era Outono, mas equivocaram-se, e abriram a porta à Primavera. Que pena não teres vindo esta tarde! 


No Estado espanhol há 4 presos políticos. Cidadãos eleitos na Catalunha e presos pelas suas ideias a 500 kms da sua terra, das suas casas, das suas famílias, perante um enorme silêncio da Europa, do Mundo e nosso.

   

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