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02/01/18

NO CORRER DOS DIAS


Marques da Silva


Óscar Lopes


Estava um desses fins de tarde em que se respira serenidade. O sol deixara-nos ainda não há muito, os sons diluíram-se mar a dentro, o olhar distendeu-se com tempo e no horizonte apareciam desenhos de formas estranhas com os restos da luz que ficava, numa mistura cromática em que os azuis perseguiam os vermelhos e os amarelos navegavam entre ambos, esculpindo chamas de oiro e enchendo o céu de um inferno alado adormecendo os nossos sonhos entre o infinito e a loucura. Apesar da mansidão temporal aconselhar a contemplação, preferi a leitura e escolhi a última página, contrariando a disciplina de ler de forma sequencial, mas eram as tuas palavras que procurava e logo de início, sobressaltas-me daquela forma. Não podes invadir assim, sem aviso, Patrícia, o descanso de uma memória que se alonga. Estremeço perante aquele discurso, recuo para um tempo que já não existe, a gravidade entra pela tranquilidade daquela tarde, «Seguramente esta será la última oportunidad en que puedo dirigir-me a ustedes. La Fuerza Aérea há bombardeado las torres de Radio Postales y Radio Corporación. Mis palavras no tienen amargura sino decepción. Que sean ellas el castigo moral para los que han traicionado el juramento que hicieron (…)». Foi assim que chegaste e abalaste quarenta anos de recordações. Estava a quatro mil quilómetros de casa, Patrícia e a catorze mil do lugar onde de se desenrolava a barbárie. Impotentes assistíamos ao bombardeamento do Palácio presencial. Neandertais fardados, biltres armados, assaltavam o poder, as ideias, o pensamento e bombardeavam a liberdade e a democracia. A escória da sociedade reunira-se no comando das Forças Armadas, para trair os seus juramentos, a pátria e a nação. Frente aos seus carros de combate, um dos presidentes mais dignos da história resistia, recusava-se a soçobrar perante miseráveis cuja inteligência nunca chegou a vencer os canais da imundície humana. «(…) solo me cabe decir a los trabajadores: Yo no voy a renunciar! Colocado en um tránsito histórico, pagaré com mi vida la lealtad del pueblo. Y les digo que tengo la certeza de que la semilla que hemos entregado a la conciencia digna de miles y miles de chilenos, no podrá ser segada definitivamente». Os sátrapas venceram naquele dias infernais em que o Mapocho se cobriu de sangue, nas fogueiras arderam livros que continham sonhos e no estádio de Santiago, os balneários se transformaram em cárceres de tortura. Tem razão o Jorge nos conselhos que te deu, «Filma, Patrícia, filma sempre primeiro e só depois perguntas se podes filmar. Se te disserem que sim continuas, se te disserem que não, já filmaste o que podias. Não se luta contra a injustiça, cumprindo ordens,…». Com esta coragem, foi possível trazer ao mundo a vilania dos cobardes e a dignidade dos Homens, os que estavam do lado da história, da justiça, da liberdade.       

As citações foram extraídas da crónica de Patrícia Portela, “Matem os escritores primeiro, publicada no JL nº 1230

Continuo no cais onde me deixaste. Construí-o pedra a pedra naquele espaço onde só havia algas e peixes mortos. Mais tarde chegou o teu navio sonhador. Nas minhas miragens acreditei que desembarcaste e que prendi as amarras. O navio que tanto esperei não só não estava preso como nunca chegou ao porto que construí, e se chegou, largou de noite mar fora e em silêncio, sem aviso. O porto que era de chegada foi apenas de passagem, sem futuro e não mais consegui que a este cais outro navio se acolhesse. Um porto bonito, mas sem navios é apenas um porto abandonado. Onde passeio.     

Todos o conhecíamos pelo Professor. Era uma pessoa serena, de baixa estatura, aspecto frágil, mas de grande dignidade. Mas muito melhor do que eu, Isabel Pires de Lima desenha-lhe o perfil, «Óscar Lopes era um homem de uma bondade enorme, de uma humildade enternecedora, de uma disponibilidade ilimitada, de uma abertura de espírito rara, de uma sabedoria insaciável – e era um cidadão sempre pronto a colocar-se ao serviço dos outros e da pátria…». Na passagem do centenário do seu nascimento, o JL, o PCP – o seu Partido de sempre – e a Faculdade de Letras, entre outras entidades, prestaram-lhe uma devida homenagem. Nos anos de chumbo da ditadura, Óscar Lopes esteve sempre na vanguarda dos intelectuais que resistiam e em toda a sua vida perseguiu o sonho de uma sociedade mais livre, mais justa e mais humana. Mário Vieira de Carvalho num artigo que lhe dedicou, cita o seu ensaio, "As Mãos e o Espírito", de onde retira esta passagem, “um homem nunca está só”: “Tem sempre consigo a sua educação, a sua experiência de vida convivente, a fala interior educada nos hábitos da fala exterior. Sem vida social um homem nem sequer se aperceberia do seu próprio eu. O eu, sendo a negação ocasional do tu ou do nós, implica por isso mesmo a sua existência, e evolui em correspondência com eles”. Sendo os limites do eu e do nós um dos grandes problemas ao nível dos direitos, conhecer a fronteira que os separa, será, porventura um debate que não conhecerá por agora uma leitura conclusiva, mas é interessante a forma como Óscar Lopes coloca e aborda a questão. Apresenta-os como inseparáveis e em evolução permanente, o colectivo como o somatório do individual. O colectivo haverá sempre de se sobrepor, pela abrangência, pela dimensão, pelo interesse geral, mas sem que o eu desapareça, se anule, antes pelo contrário, cada indivíduo, enriquecerá o colectivo, exactamente com a particularidade da sua singularidade.

As citações foram extraídas das crónicas dos autores, publicadas no JL nº 1226

  

UMA EXPOSIÇÃO

Manuel Joaquim


No Centro Cultural da Câmara Municipal de Bragança, decorreu entre os dias 30 de Novembro e 5 de Dezembro, a Mascararte, VIII bienal da máscara, com grande participação de artistas, principalmente do nordeste transmontano.

No decurso da exposição foi apresentado o livro “A Magia das Máscaras Portuguesas”, da autoria de António Pinelo Tiza, presidente da Academia Ibérica da Máscara, especialista em etnografia e com vasta obra publicada. No livro descreve as festas de inverno do nordeste e as que se realizam noutros lugares de Portugal. 

“A necessidade dos povos aguçou a sabedoria que fez do inverno a estação mais rica em ritos mágicos, com a finalidade de iluminar a noite escura. Será, porventura, por isto, que as festas de inverno se conservam autênticas no Nordeste Transmontano” (1)

É interessante a referência às reminiscências das festas celtas e rituais pagãos,  que existiram em antigas populações locais, e a apropriação pelo cristianismo desses rituais e das próprias datas festivas. 

Na cultura romana, anterior ao cristianismo, celebrava-se o “grande dia do sol, - o Natale Solis Invicti”, que acontecia, em termos de calendário, no dia 25 de Dezembro, o solstício de inverno. Na Idade Média, esta data foi apropriada pelo cristianismo, fazendo-a coincidir com o nascimento do novo sol, o nascimento de Jesus.

Segundo estudiosos, o nome Jesus é uma versão latinizada do nome em grego, que, por sua vez, tem origem judaica. A data de nascimento de Jesus e respectivo lugar são desconhecidos.

As referências existentes são as feitas nos Evangelhos segundo S. Mateus e São Lucas, sem qualquer precisão de datas e de lugares. A Bíblia não especifica nem dia nem lugar. No calendário romano, o dia 25 de Dezembro, era o dia do solstício de inverno, a festa “Natalis Solis Invicti”, que Tiza refere no seu livro. 

(1) – Tiza “Ritos do ano novo celta – A festa da Cabra e do Canhoto de Cidões” – A Magia das Máscaras Portuguesas – Âncora Editora – Dezembro de 2017




AO FECHAR O ANO DE 2017, ACONTECEU QUE...

Mário Faria




Recebi, do banco um aviso brutal: “a sua conta está bloqueada, por incumprimento da legislação em vigor. Trata-se de um micro investimento que segue o padrão de um pequeno aforrador e de quem o banco tem todos os dados pessoais e, por isso, a obrigação de me conhecer. Não sou perigoso, não lavo dinheiro nem fraldas. Além disso, poderia o Banco ter-me avisado de forma atempada da iminência desse bloqueio para o poder evitar. Os bancos estão descredibilizados. A confiança e proximidade com o gestor-de-contaestá pelas ruas da amargura, salvo raríssimas excepções. Tem toda a razão um amigo, quando diz que só há dois tipos de banqueiros: os incapazes e os capazes de tudo. Mas há mais: a funcionária que assinou o aviso de bloqueio, tinha por baixo o carimbo que a identificava como fazendo parte do “Head of Customer Dialogue” que na linguagem deles, deve querer dizer: a cabeço do cliente primeiro, o diálogo, depois

e depois ...

Vesti-me, com o fato e os sapatos de Domingo para impressionar, e fui ao banco. Pelo caminho, uma senhora idosa, muito baixinha, pediu-me para tocar à campainha que era demasiado alta para ela. Assim fiz. Despedi-me e, por simpatia, disse-lhe que não devia andar sozinha dada a idade. Com brejeira indignação, respondeu-me: “nunca saio para a rua sozinha, levo sempre comigo a minha moca, para-o-que der e vier” e que mostrou piscando o olho. E foi a pensar na moca que entrei no banco. A loja não tinha nada a ver com os antigos santuários onde morava o deus dinheiro. Dirigi-me ao funcionário de serviço e mostrei-lhe o aviso do “bloqueio da minha conta”. Foi ao computador, teclou, frisou o sobrolho, tornou a teclar, tornou a frisar o sobrolho e disse: está tudo em ordem: foi um erro do sistema. Sério, perguntei estupefacto: “mais parece uma desculpa esfarrapada”. Não, não, foi simplesmente um erro informático, lamentável, nada mais, disse o homem. Deixei a loja. Lembrei-ma da moca e dos erros informáticos que sugam todas as culpas. 

e no dia 31, pela manhã …….

Chovia copiosamente. Mas, a loucura que parece ter invadido o espaço natalício não arrefeceu. Saí para comprar as regueifas da ordem, obrigatórias na mesa por estes dias. A confeitaria onde compro habitualmente os moletes, estava a abarrotar e as fornadas tinham-se esgotado, ainda não eram 11 horas. Subi à que se seguia e nessa confeitaria era o fim do mundo. Um calor brutal; apenas consegui uma regueifa, depois de uma luta sem tréguas. “Venha daqui a uns 30 minutos que vai sair uma nova fornada”. Assim fiz: quando lá cheguei era o Texas. Não consegui entrar. Subi pela rua e na “Ribel” encontrei o tesouro. Duas regueifas à maneira sorriram para mim. Missão cumprida. O fim do ano promete. As rabanadas, também. Bom ano para todos.

O IMPERADOR

António Mesquita
Cláudio (10 a.C. /54 d.C.)


“Ora a multidão sabe que o espectáculo é feito para ela, que ela é a rainha da festa e que as autoridades lhe querem agradar; a multidão sente-se em sua casa no Circo e nos teatros (e, também, nos dias de agitação política, é para lá que corre para se reunir e manifestar). Os espectáculos são a sua festa, o editor dos jogos, seja ele o imperador, põe-se ao seu serviço nesses dias e humilha-se diante dela.”

“Le pain et le cirque”  (Paul Veyne)


Cláudio tratava por senhores (domini) os espectadores, “ele a quem , como soberano, a multidão chamava normalmente “nosso senhor” (dominus noster). A demagogia dos regimes democráticos modernos nem sequer se aproxima disto, desde logo porque lhes falta uma relação pessoal entre as massas e o poder supremo.

Mas a publicidade é outra coisa. Realmente, o consumidor é adulado pelos serviços de venda e parece ele o verdadeiro “rei da festa”.

Se o imperador romano condescendia com os gostos populares (e mesmo Augusto pedia desculpa por não estar sempre presente nos jogos), fazia-o em virtude, apesar de tudo, dum republicanismo residual nos espíritos, embora mais sensível no tempo dos primeiros Césares.

Enquanto que a publicidade nos trata como certa pedagogia trata as crianças cujos desejos são expressões de liberdade e excelência.

NOVAS IDEOLOGIAS

Mário Martins





É importante não demonizar as ideologias, pois elas representam encruzilhadas a que a nossa humanidade vai chegando (…). Mas é fundamental que as ideologias se deixem criticar e complementar (…)


José Tolentino Mendonça

Revista E(xpresso) 2017-11-25


No seu estimulante artigo, Tolentino Mendonça defende que a época do fim das ideologias está a ser ultrapassada com a recomposição plural do mapa do território. Para o autor, cinco ideologias ganham cada vez mais espaço num cenário de fragmentação. Ei-las, com o atrevimento dos meus comentários (em itálico):

“Uma primeira é o trans-humanismo, que entende o ser humano como pura transição. Como tal, distingue três fases: a do ser humano (que é o ser humano nas suas condições naturais de origem), a do ser trans-humano (que é o ser humano alterado e melhorado nas suas capacidades por meio da técnica) e o ser pós-humano (um ser tão extraordinariamente alterado que já não pode ser classificado como humano, mas é um produto utópico da biotecnologia).”

Não temos escolha: não podemos escapar à força da curiosidade e ao desejo de melhorar e prolongar a nossa vida.

“Uma segunda ideologia é o animalismo, que aposta na implosão de qualquer diferença substantiva entre homem e animal. A diversidade é explicada unicamente como gradual ou acidental e não como ontológica. Nascem daqui as teses radicais que vão na linha de uma quase equiparação entre os direitos dos animais e os dos humanos.”

A diferença fundamental entre homem e animal (e o resto do mundo animado e inanimado) é a inteligência humana. Kant defendia que é a moral, mas esta não existe sem aquela.

“Uma terceira ideologia é o neurocientismo, que não se deve confundir com as neurociências. As suas raízes terão de ser procuradas no materialismo que encara o ser humano como uma espécie de máquina, com distintos componentes e estruturas que constituem um todo complexo, mas que não é capaz de verdadeira liberdade. Pelo contrário, onde julgamos que há uma acção livre, o que temos é um predeterminismo observável nos circuitos neuronais.”

Na medida em que as condições da existência (e a existência, ela-própria) são determinadas pela Natureza (ou, para os crentes, por Deus-es), nada ou ninguém é capaz de verdadeira liberdade. O livre-arbítrio humano é apenas aparente.

“Uma quarta ideologia é a teoria do género, que hoje se manifesta com reivindicações públicas, políticas e éticas de grande impacto. Nesta visão a condição sexual converte-se numa opção que se pode tomar e alterar, pois é parte da vontade humana escolher que condição sexual assumir.”

Independentemente do sexo com que nascemos, é a atracção sexual, seja ela qual for, ou a sua renúncia consciente, que comandam.

“Uma quinta ideologia reporta-se àquilo que Gianni Vattimo chamou pensiero debole (pensamento débil). Um dos seus traços é a consideração de que não há propriamente uma substância ontológica na nossa humanidade. Ela é sim um receptáculo que recebe estímulos de todo o tipo e que a vão configurando no tempo. Desse modo, nós somos o que lemos, o que comemos, o que consumimos. E a vida torna-se uma inevitável categoria líquida, onde o processo se sobrepõe à forma.”

O mundo é sentido e percebido de forma diferente por cada forma de vida e pelo homem. Os sentidos dão-nos a certeza do mundo que nos cerca mas é a inteligência humana que o interpreta e “transforma”. O homem é uma espécie de tradutor (logo, “traidor”) da realidade. Neste contexto, justifica-se uma ontologia, próxima de um inevitável antropocentrismo. 
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