StatCounter

View My Stats

01/12/17

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva

(Baalbek)


Os dias apareciam idênticos no desenrolar dessa rotina que automatiza os gestos e encolhe o pensamento. O sol surgia tardio nessa fadiga que somava nas longas noites outonais e iluminava o espaço terreno nesse vagar de quem não tem pressa. Havia um ruído de muitas vozes, conversas trocadas, frases soltas, palavras que pouco diziam. Quase não se notou quando apareceste, uma presença que se deslocava rápida e sem ruído. Sentia-se a frescura do novo na tua passagem, silenciosa e invisível. A tua mão descia acompanhando a curvatura do corpo e deixava a chávena sobre a mesa. O gesto repetia-se a cada jornada. Um dia com a mão a descer veio também o teu olhar em viagem, breve é certo, mas suficiente para perceber uns olhos abertos plenos de curiosidade. E acrescentaste o olhar aos gestos diários. Ao teu corpo de linhas certas juntaste uns olhos irrequietos. Um momento curto, um breve instante, mas ficava um delírio de cores inundando a planície onde nascem os sonhos. Como a vida não é perfeita, um dia quebrou-se, o espelho mágico que reflectia o sol, o encanto que nascia à tua passagem. Não estavas mais, deixaste de estar, e os dias passaram. E este crepúsculo também não vieste, nesse entardecer em que as cores fantasiam a perfeição no horizonte universal. Digo-o porque não sei onde caminhas e vou escrevendo o futuro no presente porque há muitos crepúsculos que não voltas. Deixaste de caminhar para o sol e não procuras nas ondas do mar o afago de outrora. Está fria esta casa onde se abriga o meu pensamento. Está fria porque já não tem crepúsculos, o anoitecer tornou-se um momento sombrio e a multidão de cores que visitava o mar, encolheu-se na memória do tempo. Fecho a porta da minha alma para te esquecer e tanto necessitava dos teus braços para me proteger dos fantasmas nocturnos. Mas a porta não encerra. Procuro o obstáculo que a retém e encontro o teu sorriso, aquele sorriso aberto no esplendor dos dias onde ficaram os meus olhos perdidos em tantos infinitos, promessas de viagens incumpridas. Desisto e procuro refúgio no pequeno canto do quarto onde me procuravas com o ruído de uma festa. Sou agora apenas um náufrago e tu um veleiro flamejante. Uma ténue lembrança passeia-se por aí, esvoaça na minha memória, mas não levanta voo. Gostava tanto de voar contigo, mas não nasci com asas, era com as tuas que me perdia entre estrelas e planetas. Eras a minha Via Láctea. A minha casa continua fria neste Outono. Procuro encerrar a memória, soltar as amarras, voltar a sonhar. Quero regressar às quimeras, às miragens de um amor sem destino que me visite aos crepúsculos, mas deixaste tão fria esta casa! Não consigo deixar de seguir a tua viagem. Vou como se fosse descobrindo o mundo viajando clandestino nos teus olhos. Sinto a tua fadiga ao deixares Beirute. Não, a cidade ainda não tinha a divisão religiosa do presente, o colonialismo não marcara com o ferro em brasa a separação humana em nome dos deuses. É natural o cansaço, após tantos dias percorrendo o deserto, as montanhas rudes e escarpadas como dizes. A travessia do Monte Líbano com a sua aspereza, as suas neves invernais e o sol escaldante de verões que tingem o Mediterrâneo de um azul puríssimo, o vale de Baalbeck onde estacionou o exército sírio muitos anos depois da partida dos otomanos e dos colonizadores franceses. Aqui e ali, uma sombra de verde, crescem os cedros, os ciprestes e os juníperos. Por vezes, nessas manchas que se misturam com a terra amarela e sedenta corre um fio de água, mas o que ficou dessa beleza após a passagem dos caças dos judeus despejando labaredas de ódio e de vinganças? É na estrada de Alepo que o cansaço, não o desânimo, mas esse momento de abandono do corpo e da mente que nos deixa leves no correr do tempo, que te surge esse momento extraordinário de reflexão, de imobilização da memória para revisitando o passado o projectasses no futuro. A cidade milenar que conheceste já não existe. Alepo sucumbiu à miséria humana, à miserável presença dos que utilizam o nome de Deus para orgias de sangue e terror. Deixaram a sombra do medo a sobrevoar a terra dos alauitas. A cidade está exangue, tenta recuperar da tragédia, do sufoco do que viveu, mas não sente forças para tão épico esforço. Talvez tenha sobrevivido a cidadela, não me lembro, pois perante o horror até os meus olhos se encerraram tanto que deixei de ver. É nesse estertor da grande cidade síria que me detenho nas tuas palavras reflexivas. Não podias saber que ao visitares o futuro com o conhecimento do caminho percorrido, estavas a projectar o meu presente. “Na vida corrente, que com frequência se repete durante anos e ganha em estabilidade, tudo parece decerto mais sólido e mais duradouro; a consciência do ‘episódico’ perde-se; é mais fácil acreditar que cada dia contribui para se construir um futuro e esquece-se que esse futuro inelutavelmente terá fim um dia ou uma noite. Mas quem sabe o que, então, nesse momento, contará ainda? É o estado do mundo que nos proporciona uma consciência assim dos perigos, dos acasos e das restrições que intervêm no curso de uma vida breve. Sabemos que o mundo está na véspera de alterações inevitáveis e profundas, mas ignoramos como enfrentá-las. Por isso, experimentamos reconhecimento por cada episódio atravessado sem emboscadas e numa paz relativa.” Que palavras sábias, as tuas.

(“Inverno no Próximo Oriente, Annemarie Schwarzenbach, Relógio de Água, Março de 2017)

Ouço-te com aquele desplante que te conheço, a palrar para a televisão. Foram-te buscar para dizeres de tua justiça, e tu disseste, sim eu fiz a lei mas era para ser usada com bom-senso. Antes de prosseguir, tenho de confessar que nunca gostei de ti. Não sei bem porquê, não gosto e, pronto. Talvez pela tua cara de fuinha, não que a minha seja melhor, mas a dos outros arrepia-nos sempre mais, ou será por aqueles vidrinhos que desenham circunferências concêntricas que parecem rodar eternamente e lá no fundo, bem no meio, aparecem uns olhinhos de rato. Ou quiçá, seja porque o teu partido nunca conseguiu distinguir cultura de agricultura, ou tudo junto, sei lá. Por todas essas razões foi a ti que foram buscar quando foi necessário fazer da cultura um pequeno excremento do orçamento. E que bem desempenhaste o papel que te coube. Foi como uma missão ao reino da estupidez. Quando te pediram dinheiro, então concebeste aquela lei em que cada um podia procurá-lo, ao dinheiro, através de muitas iniciativas, comezainas, casamentos, enterros, festivais da canção, uma espécie de vale tudo desde que faça dinheiro. Mas cobardezinho como os teu olhinhos dizem que és, deixaste aquela porta traseira aberta para poderes fugir, o tal bom-senso no uso. Foi aí que entrou a isabelinha e como para ela o tal bom-sendo é um cacilheiro a atravessar o Tejo, lá fez o seu dinheirito numa grande comezaina, os mortos não estavam presentes, disse a isabelinha. Pela hora, deviam já estar deitados. É assim o teu país jorginho. Só me resta a esperança que durante algum tempo te dediques a outros afazeres, para que os mortos não tenham de te ouvir.   
  
  

Sem comentários:

View My Stats