Mário Faria
17 Outubro
Não tenho dúvidas que foram cometidos erros graves na gestão da floresta, na prevenção e combate aos incêndios e de que os partidos do arco da governação são os primeiros responsáveis. Mas, deixar toda a responsabilidade à actual ministra da AI, parece-me absolutamente inadequado. Se o PR já veio a terreiro a pedir contas, não pode ficar o governo por um ralhete e mandar às urtigas apenas a responsável pelo MAI. E não pode chegar, se as culpas são tão claras e caem sobre todo o governo. Depois de Pedrogão os fogos passaram a ser um problema nuclear da governança e do Estado e, por isso, do primeiro-ministro. E falta ainda saber se não serão deduzidas responsabilidades criminais a alguns responsáveis. Por outro lado, temos agora uma “bíblia” que mostra os pecados, distribuindo culpas com generosidade e o que tem de se fazer para que nunca mais tenhamos de assistir a este tipo de acontecimentos. Não acredito em tanta bondade e certeza. O governo colou-se ao documento como tábua de salvação. Agora é que nada vai ser como dantes, promete Costa, como se fosse fácil implementar novas competências, impor outros procedimentos, arquivar os antigos costumes e selecionar uma novas equipa, esperando de todos os parceiros a máxima lealdade e saber. É possível, o “Novo Livro” tem tudo, basta seguir o guião. Os portugueses são uns tipos porreiros mas pouco amigos da coisa pública e pouco activos na intervenção cívica. Pela minha parte, não acredito em milagres e vamos continuar a sofrer. As receitas vindas do conhecimento, ainda que cumpridas, vão ser operadas e monitorizadas pelas estruturas em funções e sujeitas a todas as ocorrências adversas que acontecem quase sempre em situações limite, sempre muito difíceis de combater e muito fáceis de avaliar e decifrar depois dos acontecimentos, quase sempre sem ligar aos constrangimentos próprios de quem tem de tomar decisões no terreno, sem tempo a perder e sem direito a segunda avaliação. Pode ser que a próxima estrutura integre quadros independentes e com poder para escolher os seus colaboradores em áreas estratégicas. Pelo que ouço na TV, seria canja para muitos. O “Alcaide” espanhol denunciou “como terrorista” a onda de incêndios ocorridos na Galiza. Percebo que não se dê relevo à notícia em Portugal, que poderia ser aplicável ao caso português, não fosse desviar o enfoque no tema principal: enfrentar, estudar e atacar todas as causas que produziram efeitos tão brutais. Tenho ouvido sábios comentadores e todos parecem saber o que fazer e como fazer. Na noite de ontem, numa mesa redonda, assisti a uma grande convergência de ilustres comentadores da SIC. Louçã fazia parte do grupo e antecipou o que hoje li de Mariana Mortágua e não fui capaz de travar um pensamento perverso e lembrei-me dos “cartilheiros” do futebol pátrio. O que sinto: um enorme desalento e muita tristeza. E muita dúvida. Na dúvida só sei duvidar. Espero que as diferentes autoridades sejam capazes de mitigar os efeitos da tragédia, honrar os mortos e tratar dos vivos.
18 Outubro
A direita raramente perde. E quando isso acontece veste a roupagem que está mais a jeito: adapta-se e preparar-se para um novo assalto. E vai ganhar o poder, muito brevemente. Até a natureza lhe presta serviço: se fosse um golpe tramado para fazer voltar a direita e as suas políticas, se conseguiria melhor. E com o processo Sócrates a empurrar a banda, o declínio do PS fica mais próximo dos congéneres europeus. Por outro lado, a destruição foi tal que os próximos anos prometem alguma calmaria. Há menos territórios para arder. O futuro promete alguma recuperação, até porque vai ocorrer um investimento generoso (e justo) a todos os lesados dos fogos. E provavelmente, um pequeno impulso na económico local, até que se apaguem os impulsos da generosidade. E que poderá produzirá alguns efeitos sobre algumas reformas negociadas e previstas no OE e negociadas no âmbito do acordo com os parceiros do PS. O presidente já avisou: atenção aos efeitos de algumas medidas que vão cair em cheio em 19, ano de eleições. Acho muito adequada a apresentação da moção de censura por parte do CDS. E o que vão fazer e dizer os partidos de esquerda? Será que este governo está ferido de morte e vai ser trucidado? Como compatibilizar as críticas duras com um voto favorável? O debate na AR foi mais do mesmo. O PSD assumiu a oposição trauliteira e Assunção Cristas foi implacável, mas com um registo de primeira-dama: menos Marie Le Pen e mais Margaret Thatcher. O PS demonstrou a enorme fragilidade que grassa no partido. O PCP disse que as políticas são quem mais ordena e o Bloco disse o mesmo que Louçã no dia anterior e lhe valeu de Miguel Sousa Tavares o reparo de que a sua proposta era velha e vinha do tempo do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles. Desliguei-me dos fogos. As notícias das demissões caíam sem surpresa. Estava muito cansado, e virei-me para a música.
26 Outubro
O governo colocou Cabrita na AI, mudou de gente na P.Civil, definiu o roteiro, as entidades e as gentes que passariam a ficar comprometidas no combate e prevenção dos fogos. Tudo direitinho, conforme as NEP´s (normas de exercício permanente). A moção de censura não passou e o Presidente aceitou o voto de confiança e deixou muitos avisos ameaçadores ao governo. Entretanto, vai-se sabendo que há um relatório da P.Civil que rebate algumas verdades da “Bíblia”, usando o inalienável direito ao contraditório, ao mesmo tempo que se vão conhecendo alguns reparos que vão saindo, em voz baixa, do governo relativamente ao presidente e ao que lhe fora já previamente informado sobre o plano de contingência, nomeadamente das demissões já em curso. O presidente feriu de morte o governo e só não o demitiu porque Passos se pirou e o PSD está órfão. O homem tem uma qualidade indiscutível e sincera na forma como se apresenta no terreno e dialoga com as gentes. E cumpriu essa missão de forma brilhante. Mas, não há bela sem senão. E como provavelmente não esqueceu a sua apetência de “fazedor de factos” e porque continua a ser um homem de centro-direita muito ligado à Igreja e um animal político habituado às lutas pelo poder, temo que vá continuar a fritar em lume brando o actual governo para o entregar à direita, de mão beijada, no momento certo: nas próximas eleições. Tem demasiado poder para meu gosto. A florestação não vai ser cumprida: não há gente, nem condições, nem a mobilidade do trabalho aponta para que se cumpra esse desígnio. Os ditames da UE e o próprio “conceito de globalização que, assente no favorecimento dos sectores mais competitivos, afasta as pessoas dos sectores menos competitivos”. Uma tragédia nunca vem só. Temo que os danos causados pelos fogos causem graves prejuízos políticos. Vamos ver. A porta que se abriu pode fechar-se com e por obra de Marcelo Rebelo de Sousa: os seus recados passarão a ser virais. Certo é que os beijos e abraços vão continuar, a bem da Nação. Estou muito desiludido com o governo: não esteve à altura para tomar decisões assertivas, depois não foi capaz de se preparar para diminuir riscos futuros e de se defender com substância. E os aliados só desajudaram: fugiram todos não fossem ser prejudicados e ficar mal na fotografia. Um contorcionismo permanente. E vamos perder o que tanto custou a ganhar.
* A designação de Bíblia ou Novo Livro no texto são formas de enfatizar a suprema qualidade e o auto de fé que gerou o Relatório da Comissão Técnica Independente.
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