Marques da Silva
Quando as imagens nos alcançam deixam-nos naquela estupefacção de não conseguirmos compreender o que os nossos olhos vêem. Num primeiro instante, pareciam desenhos animados, uma cena de ásterix, de bonecos ou desenhos atirados ao ar, personagens puxadas pelos cabelos e vergastadas por todo o lado. Só quando a luz incide com mais clareza compreendemos que havias aberto o teu canil privativo e soltado os teus perritos sem açaime, com o grito «vamos a eles». A violência gratuita foi sempre o símbolo dos covardes, daqueles que utilizam o autoritarismo do poder para desencadear a imposição das suas ideias, das suas verdades, dos seus ódios, das suas desigualdades. No fim do dia lá apareceste tu, marianito, a falar de democracia com aquela cara de imbecil a que nos habituaste. Falavas de democracia e a memória trazia-me as palavras poéticas de violeta parra, “miren como nos hablan de libertad/ cuando de ella nos privan en realidad”. E na tua infinita estupidez falavas do teu país azul, de que são todos azuis, daqueles que só queriam perturbar a convivência entre todos os azuis, que essa nação azul nunca se vai fragmentar, injuriavas o nacionalismo dos azuis-escuros, enquanto exaltavas o nacionalismo dos azuis-claros, dizias que o país azul é uma nação onde vivem todos os azuis e eu sentia como a tua parvoíce ia aumentando na mesma dimensão da tua ignorância. Marianito, porventura, sabes o que é uma nação? Sabes que o teu país azul pode ser um Estado, um país, mas não é uma nação? Não sabes, nem necessitas de o saber, afinal o teu Partido Podre não precisa de explicar nada, as suas acções são demasiado esclarecedoras. A ordem e a constituição, bolçavas tu, marianito, como algo intangível e sagrado. Compreendo. O teu Partido Podre foi uma invenção do fraguita, onde se puderam acolher todos os criminosos, assassinos e torturadores que tiveram uma vida farta, à sombra do excremento ferrolano. Foi assim, com pactos de silêncio, é «melhor esquecer o passado, pois mexer-lhe é como abrir uma ferida que não mais vai curar», que cobriram, taparam com um manto vergonhoso os seus crimes, que ao longo de 40 anos, o regime violento e torturador que o vermezito sedicioso implantou sobre um milhão de mortos, passeados, fuzilados, torturados e explorados. É esse o teu país azul, marianito, que herdaste e prolongas, com as tuas audiências nacionais, essa tua justiça, a tua moderna inquisição, enquanto vais tirando do armário os esqueletos que a ditadura acumulou e foi guardando. Afinal, o teu país azul arrasta às costas um dos maiores genocídios da história. Resolves a política com a justiça, a mesma que mandou fuzilar e condenar o que produzia a tortura carcerária. Não, nada está esquecido e a prová-lo vem aquele senhor casado do teu Partido Podre dizer que se necessário voltam a fuzilar os azuis rebeldes. É este o teu país onde queres que sejam todos azuis, tu depois te encarregarás de separar os azuis-claros dos azuis mais escuros. Tu, marianito, falas da constituição, mas qual? A que vós derrubastes num golpe violento e criminoso, até hoje impune, ou a que, há 40 anos, cobriu com o tal manto de silêncio, os crimes amontoados? E falas de democracia num regime monárquico constitucional? Os teus azuis, são súbditos ou cidadãos? Uma democracia com um rei é uma democracia castrada, não passa disso. O teu reizinho quando fala para os azuis, fala em nome de quem? Quem lhe concedeu o direito de falar em nome de todos os azuis, pese embora sejam eles a pagar-lhe todas as extravagâncias, a ele e à sua mulherzinha de plástico? Era bom que usasses a cabeça de quando em vez, para variares um pouco a imbecilidade, mas tu não a usas. Tu, marianito és um desses seres perfeitos que vai morrer sem chegar a estreá-la. Sim, é certo, com a ajuda dos obreritos – são sempre tão úteis nestes momentos – vais vencer de novo, mas não te iludas, marianito, a questão vai continuar a germinar, e numa outra primavera quando pensares que já está tudo aquietado, a bolha vai rebentar-te de novo, em cheio nas ventas, pois ao contrário de ti, os povos têm dignidade e não nasceram para ser servos.
Era um país de florestas verdes, de montanhas e vales pouco extensos. Aqui e ali, uma pequena cordilheira, muitas árvores, aldeias penduradas nas encostas ou quase perdidas em extensas planícies. Três ou quatro rios dilatados em água e extensão, de antigas e novas estradas, com restos de comboios que ainda iam passando, paisagens que deslumbravam e seduziam e outras encantadoras. Havia também o oceano, esse infinito de azul que nos enchia de ternura nas tardes de primavera e de melancolia nas de Outono. E havia as gentes, simples, indisciplinadas, quase sempre tristes mas sem desânimo, no trabalho, nas epopeias, no construir de uma história tão singular. Havia também os abutres. Eram uma minoria, mas dizimavam tudo à sua passagem, numa ganância e vaidade obscenas. Esse país, bonito, era o meu país, onde nasci, cresci e vivi ao longo de uma vida. Esse país ardeu, num verão de terra seca por ausência de água e no meio de intensas e ventosas chamas, perante a cobiça e a negligência dos abutres. O esplendor do fogo tudo levou. Agora, esse país que era o meu, jaz em escombros de terra e cinza, deserto de vida e com muitas promessas dos… abutres.
Não sei se foi contigo que aprendi a viajar. Se não foi, depois de te conhecer as minhas viagens alcançaram outra dimensão, a da literatura, a da poesia, a do encanto, a de aprender a ver com o olhar, de sentir com alma, a deixar correr como um rio vagaroso os sentimentos que em nós penetram quando extasiados apreciamos o que é infinitamente grande ou pequeno, a encontrar a beleza na extensão mágica de lugares que não conseguimos definir e no contacto com as gentes tão diferentes e ao mesmo tempo tão humanas mesmo que apenas na extensão da sua pobreza tão explorada. Procuro imaginar-te percorrendo as terras da Pérsia, do Afeganistão, nesse tempo que nos parece de medo e receio que nos mostras tão límpido, tão simples e tão generoso e a guerra que explodia ao longe parecia não perturbar a serenidade dos dias onde a sobrevivência era o quotidiano dessas gentes que encontravas e te ofereciam o pouco que tinham. Quando muito mais tarde, o meu olhar se avizinhou dessas montanhas, ainda não te conhecia, mas agora sei que já via conforme me ensinaste a ver, só não consigo bordar de beleza as palavras como tu tão bem fazias. Não resisto a deixar um pouco de ti, Annemarie, neste curto e tão parco texto, usando as palavras que a tua alma escrevia: “quando vim ao Hindu Kush pela primeira vez, chegando pelo norte da planície tórrida do Turquestão, depois de transpor as suas gargantas históricas e grandiosas, senti-me tentada a escrever um hino e nada mais. Um hino ao seu nome, porque os nomes são mais do que designações geográficas, são música e cor, sonho e recordação, são o mistério e a magia – e longe de ser uma experiência decepcionante, é antes uma coisa maravilhosa redescobri-los um dia, carregados de esplendor, de sombra e de fogo, e da cinza fria da realidade. (…). Quando chegava a noite, na obscuridade sempre como que impregnada da cor leitosa de astros longínquos, voltava-me por vezes para sul, em busca de um reconforto e encontrava a mesma cadeia de montanhas azuis que me era já familiar.” Também cheguei pelo norte, pelas terras de calor abrasador e o pássaro de asas largas que me levava parou em pleno espaço aberto nessa altitude que nos pode fazer cair desamparados, e fiquei por ali, a contemplar essas montanhas azuis que viste. Creio que ainda lá estou. Aguardava pelas tuas palavras para traduzir as cores que os olhos viam, lembrando-me o que me ensinaste, que, “não podemos amar deveras aquilo que nem vimos com os nossos próprios olhos nem apertamos nos nossos braços”, pois, “até mesmo a nostalgia não é mais do que uma forma de solidão que se exala e se esvazia da sua substância”.
“Todos os Caminhos estão Abertos”, Annemarie Schwarzenbach, Relógio de Água, Outubro de 2016)
Apenas eu te olho e pergunto porque te escondes atrás dessas lentes escuras, como se perante ti, estivesse uma luz agressiva, quando na verdade somos alcançados por esse sol dolente na tranquilidade de uma tarde que vai declinando. No teu rosto inexpressivo, nasce por fim um sorriso, com essa ternura com que acolhemos alguma mensagem que nos chega. Primeiro a tua mão leva o objecto até ao ouvido. De seguida percebes que as palavras são escritas e não faladas. O teu sorriso abre-se um pouco quando lês e ainda mais quando respondes. Passeias o sorriso e o olhar pela carruagem até ao exterior. Continuas sem me ver. Por fim, voltas a serenar e colocas de novo a escuridão das lentes sobre os olhos, deixando um rosto dividido entre o claro e o escuro. Mas nesse momento, quanto tudo já parece terminado, sou eu que vou em voo alado, soltei o pensamento e a memória, larguei as velas de um veleiro sem leme, remei para além das tuas negras lentes, os meus olhos já te despiram, já te amaram em noites sem nome e madrugadas sem fim, assaltaram a fortaleza imperial onde te abrigas, os meus olhos querem desposar-te como na poesia de Pessanha, erguer-te no limbo perfeito da imaginação que voa livre no interior da minha alma.
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